A autodeclaração de gênero de mulheres trans expõe mulheres cis a predadores sexuais?
Autodeclaração é um privilégio cisgênero, pelo qual as pessoas trans tem lutado a fim de terem seu gênero reconhecido, na busca de cidadania e acesso a direitos. Pessoas cis tem seu gênero aceito sem qualquer questionamento, necessidade de comprovação e/ou negativa de direitos devido ao gênero que se identificam. Nesse sentido, o tratamento diferenciado e desproporcional que pessoas trans tem sido submetidas ao reivindicar o gênero que se identificam se tornam violações de seus direitos humanos.
Fica nítido de o porque se tratar de um privilégio cis: pessoas cisgêneras não precisaram durante anos recorrer a processos judiciais, inspeções físicas vexatórias e de saúde para provar aquilo que diziam ser, se submeter a cirurgias de modificações corporais, incluindo a redesignação sexual em muitos casos, para o reconhecimento de seu gênero e consequentemente o acesso a cidadania que está instituída em nossa sociedade, que ainda segue generificada e binária.
Essa discussão é mais um cavalo de tróia disseminado por grupos de ódio para manipulação da opinião púbica, através da política do pânico e terror que vem sendo difundida pela falaciosa “ideologia de gênero”, assumida inclusive por feministas trans-excludentes de esquerda, que afirmam que a transgeneridade seria alguma espécie de “terapia de conversão de gays e lésbicas em pessoas hétero” (SIC) ou que haveria um plano advindo de um suposto lobby trans para transformar pessoas cis em trans — o velho discurso cunhado pela igreja católica que ganha força e tem alinhado grupos de direita, fundamentalistas religiosos e grupos feministas genitalistas de (cis)gênero.
Os processos de autodeclaração de gênero existem em muitos países ao redor do mundo há anos e estão em convenções internacionais como os princípios de Yogiakarta e decisões da CIDH. Hoje, cerca de 1,5 e 2 bilhões de pessoas vivem sob as leis de autoidentificação. Brasil, Irlanda, Dinamarca, Argentina, Noruega, Portugal, Bélgica, Índia, muitos estados nos Estados Unidos e províncias canadenses, todos têm alguma forma de auto-identificação. Sem que houvesse qualquer aumento no número de agressões sexuais em qualquer lugar atribuído as pessoas trans ou em decorrência do direito a autodeclaração.
Não há qualquer relação que sustente a afirmação usada por grupos antitrans de que a autodeclaração trans traria qualquer risco as mulheres cis. Esse tipo de argumento tem uma intenção muito bem definida: negar o direito a identidade de gênero das pessoas trans e seu reconhecimento legal, e consequentemente negar o acesso de mulheres trans as espaços segregados por gênero. E isso é importante pontuar para entendermos o que está em perspectiva quando analisamos a discussão sobre autodeclaração proposta por esses grupos que tem se organizado e incidido politicamente para deslegitimar vivências e as experiências das pessoas trans, e mantê-las no lugar subalternizado a que foram (e ainda são) relegadas.
O falso argumento de que permitir que pessoas trans alterem suas certidões de nascimento “poderia” permitir que predadores entrassem nos espaços unissexuais do país (ou do mundo) se sustenta na ideia falaciosamente transfóbica de que homens iriam mudar sua documentação para acessá-los, sendo que esses espaços não tem qualquer dispositivo de controle sobre seu acesso — e seria inaceitável uma proposta nesse sentido a fim de limitar o acesso das pessoas trans, o que seria visto como uma proposta flagrantemente trans-excludente e desproporcional em um cenário onde não há elementos para embasar tal decisão.
O processo de retificação foi retirado da necessidade de um processo judicial, mas na esfera administrativa continua extremamente burocrático, fazendo com que muitas pessoas desistam de realizar a retificação ou sejam excluídas dessa possibilidade. Cabe ressaltar que apenas em 2018 as pessoas trans brasileiras passaram ter o direito a audeclaração gênero e ao reconhecimento de sua identidade de gênero como um direito — a partir do julgamento da ADI 4275 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
No Brasil, a retificação registral de pessoas trans por autodeclaração é um processo pouco acessível, burocrático e caro. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) realizou um projeto chamado EU EXISTO onde monitorou o processo de retificação de pessoas trans a partir da decisão do STF, e chegou a estimativa de que cerca de 65% das pessoas trans não tiveram acesso a retificação registral. Os principais fatores que dificultavam o acesso variaram entre a falta de documentos de identificação (registro civil, identidade, CPF e outros), os custos do processo e negativas de acesso a isenção por hipossuficiência, dificuldade para emissão de certidões necessárias, desinformação para a organização do processo, e a transfobia institucional ou descaso no tratamento por parte dos órgãos cartorários.
Sempre que qualquer direito é pensado, discutido ou conquistado para pessoas trans, uma perspectiva de fraude ou risco a terceiros é colocada na defesa da negativa desse direito. O que é totalmente desproporcional, visto que o processo de retificação documental das pessoas trans por autodeclaração é um processo pessoal e traz impactos reais no dia a dia dessas pessoas. Além do fato que é propositalmente ignorado sobre a proteção legal das pessoas trans e os efeitos positivos da retificação em suas vidas, em detrimento de uma suposta proteção de outras pessoas.
Fraudes/fraudadores devem ser tratados como tal e ter o tratamento legal devido. E não podem ser aceitos como argumento definitivo capaz de negar direitos a população trans, ou serem usadas como justificativa para atravancar o processo de cidadanização dessas pessoas. E nessa tentativa, acaba por demonstrar a face real que pretende tratar a exceção como regra, colocando todas as pessoas trans como fraudadoras em potencial e ignorando o principio do benefício da dúvida.
Nesse sentido, é pouco provável — e até fantasioso, acreditar que um homem cis-hetero iria passar por todo esse processo, com o intuito de estuprar mulheres. Como se ele precisasse se submeter a alguma artimanha burocrática para estuprar ou violar mulheres e/ou crianças, quando temos uma sociedade de favorece a cultura do estupro, incentiva o assédio e silencia diante da violência sexual. Sabendo ainda que, o estupro acontece em sua maioria por conhecidos e/ou dentro de casa em mais de 80% dos casos.
Todas as tentativas de argumentar contra os direitos trans, utilizam uma suposta proteção das mulheres cis, sustentada na ideia flagrantemente transfóbica de que mulheres trans seriam “predadores sexuais pervertidos” que estariam transicionando para estuprar mulheres e meninas. Além de não haver indícios de aumento de casos de estupros ou qualquer violência sexual praticadas por mulheres trans contra mulheres cis em espaços segregados por gênero ou aqueles utilizados conjuntamente.
Não podemos deixar de mencionar os casos de estupros contra mulheres trans e do quanto essa violência é intencionalmente ignorada por quem se diz contra a violência sexual. Muitas mulheres trans são vítimas de estupro corretivo e outras são vitimas de predadores sexuais — inclusive as profissionais do sexo enfrentam essa violência, onde os casos são ignorados por serem trans e se tratar de pessoas que foram designadas homens ao nascer (AMAB). São comuns casos de mulheres trans terem seus casos deslegitimados devido a sua condição, sem que qualquer discussão tenha sido feita para a proteção dessas mulheres quando falamos sobre violência sexual.
Fica nítido que o processo de criminalização das mulheres trans na utilização dos espaços femininos parte da ideia de que seriam homens(sic), em um ataque direto a sua identidade de gênero e com a intenção de associar mulheres trans a crimes sexuais cometidos por homens violadores de mulheres cis, em um processo extremamente violento, desonesto e desumanizante.
Cabe ressaltar que desde sempre — onde são permitidas — travestis e mulheres trans utilizam o banheiro feminino, sem que tivesse sido percebido qualquer incidência de casos envolvendo importunação e/ou violência sexual contra mulheres cis, especialmente depois da aprovação do direito a autodeclaração de gênero das pessoas trans no país.
“Ah, mas tem um caso no Reino Unido, outro caso nos EUA”, as pessoas dizem. Repito: Não tratemos a exceção como regra. Tratar toda a população trans e ignorar a realidade do brasil, para colocar todas as travestis e mulheres trans como estupradoras me parece muito mais um crime contra a humanidade dessas pessoas do que a ideia de que há alguma intenção em proteger as mulheres cis efetivamente.
Citei o exemplo do banheiro, mas acredito que muito dos pontos apresentados podem facilmente ser usados para qualquer espaço destinado a pessoas do mesmo gênero e do quanto dividir esses espaços com pessoas trans não aumenta o risco de violência às demais pessoas. Já o contrário, sempre ganha espaço na mídia a expulsão recorrente de mulheres trans dos banheiros femininos, incitados por mulheres cis que se sentem ofendidas(SIC) em dividir o seu espaço conosco — não exatamente por medo de violência sexual, mas por pura transfobia cissexista que vem sendo passada de geração para geração.
Na verdade posso afirmar que nesses casos, são as mulheres trans que estariam em perigo ao dividir os espaços com pessoas cis. E para isso, precisamos pensar em estratégias para garantir segurança as pessoas trans ao dividir os espaços com pessoas cis que tem violentando nossos corpos cistematicamente, com casos concretos e públicos, sem que fosse tomada qualquer medida para a proteção dessas mulheres trans que vem sendo humilhadas e tendo sua intimidade violada.
Políticos cisgêneros há alguns anos começaram a usar pessoas trans para parecerem progressistas, mas sem compromisso real com as questões trans. E antes que a luta trans "se tornasse um problema para eles" passaram a recuar diante do levante antitrans na agenda política global. Jornalistas cis de veículos transfóbicos há anos usaram questões trans para criar um pânico moral a fim de ganhar atenção em seus veículos. E nesse meio tempo, grupos radicais antitrans foram potencializados para auxiliar no espetáculo. Parte da mídia está fazendo a mesma coisa que fez nos anos 70, 80 e 90 no processo de manutenção da imagem da travesti que não deve ser socialmente aceita nos espaços públicos.
E, assim como os pânicos morais jogados em grupos que sofrem processos de políticas e discursos de ódio, isso vem influenciando a política do governo e dando poder a grupos de ódio e fanáticos que exploram essa narrativa com sucesso para potencialmente negar direitos e arriscar a vida de milhares de pessoas trans no Brasil — mesmo depois da decisão do STF que reconhece não apenas o direito a retificação registral, mas o direito a autodeclaração de gênero e à identidade de gênero das pessoas trans como direitos fundamentais.
E o resultado temos visto no dia a dia: Aumento da violência contra pessoas trans em todas as esferas, sejam elas institucionais, governamentais, nas relações com a sociedade e inclusive nas relações intrafamiliares que mesmo vendo pais acolhedores de filhos trans, proporcionalmente vemos casos de expulsões de casa tomarem o espaço público.
Houve ainda uma piora na saúde mental das pessoas trans e aumento nos índices de pessoas suicidadas e de assassinato, quando em 2020 o Brasil seguiu como o país que mais assassina pessoas trans do mundo com 198 mortes, sendo 23 suicídios e 175 assassinatos — de acordo com o Dossiê da violência contra travestis e transexuais brasileira em 2020.
Assim, fica nítido que garantir o direito a autodeclaração de gênero as pessoas trans não faz retroceder em nada os direitos das pessoas cis, especialmente das mulheres. E que não há qualquer indício de que haja relação entre a cultura do estupro ou de casos envolvendo violência sexual contra mulheres cis e o avanço da luta trans. E que, vejam só, são as pessoas trans que precisam de proteção urgente quando em espaços públicos.