A Família está destruída!

Bruna G. Benevides
6 min readFeb 3, 2020

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Se o arranjo de família proposto pelo estatuto da família fosse algo natural, ele não precisaria de uma defesa tão violenta para a manutenção do seu status hierárquico que determina quem pode ou não constituir uma família, nos moldes que ele propõe.

Pensando nisso, proponho um exercício simples: Quem não conhece famílias completamente destruídas, sem intimidade, amizade ou afeto e que vivem apenas de fachada, que se alimentam da opinião de outras famílias — também de fachada, advindas de rituais canônicos que servem unicamente como amarras e privilegiam o silencio ao invés de propor uma discussão ampliada sobre o que este modelo falido de família tem custado caro a nossa sociedade, e especialmente a saúde mental e física, assim como a própria existência de pessoas LGBTI?

A toxicidade dos arranjos familiares cis-centrados já nascem com suas bases comprometidas pelo proibicionismo e monogamia compulsórios. Que criam ambientes propícios para traições, proteção de estupradores, femicidas e casais frustrados com sua própria sexualidade/relação. Mulheres em papel de subserviência — como defende a ministra da família e seu sécto, e a criação em larga escala de filhos hetero-machos, frutos da violenta masculinidade tóxica.

A meu ver, parece óbvio que as bases da família “tradicional” deveriam ser destruídas — para que uma nova noção de família venha a se constituir, ampliar e abranger plenamente as pessoas que vivem em outros arranjos familiares, as pessoas trans e toda diversidade da reais famílias fora das teorias e ideologias religiosas.

E a Amanda Palha fala da instituição família como ela nos é apresentada pela sociedade — uma única, com núcleo formado por marido, mulher e filhos. E esse conceito é um que precisamos superar — seja para ter filhos numa estrutura não heteronormativa, seja para vivermos rodeados de vínculos afetivos que não estejam compreendidos no modelo heteronormativo de família.

Eu não tenho dúvida que o que ela propõe é a ideia de que não é necessário afirmar ser família para ter/ser uma ou para ter direitos. Que mais importante do que dizer família devemos viver essas relações em sua plenitude. Não por necessidade de direitos ou por convenções sociais, mas sem seu sentido amplo e irrestrito. Família como instituição realmente é mais um lugar social do que um lugar de convivência. É contrato.

Família é o núcleo capitalista, neopentecostal e conservador que mantém o status quo. Família/instituição precisa ser derrubada para que a família/afeto possa existir longe da normatização. A gente pode — e deve, ser contra a família porque ela é uma instituição tóxica, sem deixar de acreditar em afetos, capazes de produzir famílias outras, que se pautam no amor e respeito mútuos. Elementos que não cabem na família tradicional, onde qualquer pessoa que não se enquadra nela vem sendo excluídos, sejam LGBTI, em especial pessoas trans, mulheres libertárias, PCD ou qualquer outra existência que manche o modelo da tradicional família patriarcal.

E muito me assusta que uma deturpação vinda de conservas tenha ganhado tanta força em nosso meio. Isso só prova o quanto as pessoas LGBTI ainda esperam — de pires nas mãos, a aprovação e/ou uma possibilidade de estarem sendo inseridas junto àqueles que foram eleitos para legitimar quem serve ou não para existir ou ter direito a uma família, nos moldes mais tóxicos e violentos que são impostos historicamente como forma de manutenção do poder do homem sobre a mulher.

Vale lembrar que, lá trás, quando gays pautaram o casamento GAY— que era uma pauta branca e burguesa junto aos rituais de aceitação social (que só depois virou ‘’igualitário’’, ‘’homoafetivo’’, etc), e que até hoje é um grande privilégio para quem pode casar, este foi negociado em detrimento de nossas existências e demandas. Pessoas trans fomos deixadas de lado, já que nossa prioridade era outra: Sobreviver. Somente em 2018 tivemos garantido o direito ao nome, mas o banheiro ainda nos é negado. Entendem o quão primárias nossas pautas ainda são?

Não temos nenhuma normativa legal que garanta o direito de constituir família as pessoas trans. Mas isso, ninguém se importa. Muita vezes temos que recorrer as gambiarras legais para ter o mínimo de reconhecimento para as questões legais, de direitos. As vezes sendo submetidas a assinar uma união estável com nossos nomes de registro, sendo enquadradas em uma relação homossexual (sic), ou ainda, após a retificação registral, como se fossemos pessoas cisgêneras — e nosso problemas estivessem todos resolvidos. Há casos de mulheres trans lésbicas que não conseguem registrar suas filhas, ou sofrem perseguição de suas ex-parceiras para que não tenham acesso aos filhos da relação. Não nos é permitido constituir família ou constituir algo que temos chamado de TransParentalidade.

E aqui vale lembrar que o casamento homoafetivo (da forma que está posto) não contempla pessoas trans. Que renegadas do direito ao afeto, ainda tem inúmeras dificuldades em registrar ou constituir direitos ou mesmo uma família, pois o espantalho da ideologia de gênero recai, quase sempre, em nossas costas. Isso deve ser lembrado sempre.

Anos passaram, e o retrocesso que vivemos é tão gritante que voltamos a discutir o sentido de família, a partir de um padrão cristalizado e uma noção fundamentalista, binária e cisgênera. Quem é o gay negro e pobre ou a lésbica da periferia que consegue casar? Aliás, casar para as pessoas LGBTI tem um sentido totalmente oposto ao das pessoas cis-hetero, que casam para prestar contas a sociedade, enquanto muites de nós casamos exclusivamente para ter reconhecidos nossos arranjos familiares como possíveis. Ressignificando a noção de família.

Tenho visto diversas movimentações de organizações LGBTI conservadores que privilegiam acordos com nossos algozes ao invés de ousar ir além e defender questões urgentes para a promoção de mudanças estruturantes se posicionando contra a Amanda Palha, largando sua mão e a jogando na “cova dos leões’’. A colocando em um lado oposto em nossa luta. Destas mesmas pessoas, não houve solidariedade ao linchamento virtual a que foi submetida ou às ameaças que sofreu. Não teve acolhimento ou a possibilidade de um diálogo fraterno a fim de ouvir o que ela disse. Não houve (trans)sororidade ou cuidado com sua saúde mental.

Exatamente na hora em que mais precisamos de alianças possíveis para enfrentar aqueles que tem cistematicamente atacado nossos direitos. E isso, além de transfobia, me beira a um oportunismo midiático e um nítido equívoco tático para se aliar ao discurso falacioso dos conservadores anti-lgbti. Se colocando exatamente do mesmo lado de quem no primeiro momento vai rir ou fazer chacota sobre nossos trejeitos, proibir adoção ou impetrar projetos para proibir nossas formas de amar.

Grande parte das pessoas que se posicionaram contra o vídeo da Amanda, foram baseadas em uma notícia publicada em um sita gospel. PASMEM!!!! Vejam bem, pessoas LGBTI sendo manipuladas por um site de fofocas gospel, que tem extenso histórico de ataques a população LGBTI. Ou, o que é ainda mais assustador, viram o vídeo original, e não entenderam nada do que foi dito.

Eu JAMAIS soltaria a mão de uma pessoa trans. E qualquer tentativa de isolamento da Amanda, não passa de uma estratégia transfóbica para não estar associado a travesti destruidora, afastando-se dela para ficar bem na foto ao lado de nossos opressores. Afinal, a defesa da família, como ela esta posta e é defendida em falas do atual presidente e projetos religiosos para delimitar o que é família, é nitidamente uma tentativa de negar nossas possibilidades de arranjos familiares outros, que não se enquadram na hipocrisia cristã.

E aqui vou lembrar a vocês que, mesmo casadas e tendo alguns direitos garantidos — por uma luta dos movimentos sociais — a prova de que lutamos pelo direito a nossa família, vocês não fazem parte da família deles. Aliás, é um erro crasso querer ser como eles. Nossa família LGBTI, já é um importante caminho para a destruição da família de propaganda de margarina.

Este texto é uma tentativa de dizer que somos nós, as LGBTI, as responsáveis por construir um novo projeto de família, e de sociedade, capaz de produzir potencialidades a partir de nossos afetos e arranjos vivíveis de relacionamentos, em sua integralidade. Pautados no respeito, no amor, e principalmente na liberdade.

Muita gente não quer entender a profundidade e urgência desta discussão. Fazer o que? Ao invés de refletir, subir ou progredir na discussão, eu rebaixo o discurso do outro ao meu (des)nível. E neste campo eu afirmo a vocês que entre a direita e a esquerda, a luta de classe e neoliberalismo, entre gays e religiosos, eu fico é com as TRAVESTIS!

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Bruna G. Benevides
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Written by Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!

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