Atacar pessoas trans é um grande negócio.
E enquanto pessoas trans sofrem violências, há muitas pessoas cis lucrando com isso.
Um dos negócios mais rentáveis e lucrativos da atualidade, sobretudo nas redes sociais, é a transfobia. Seja pela ausência de respostas a altura, recuos e omissões, muita gente ganha ao atuar para atacar pessoas trans. Desde políticos de extrema direita, fundamentalistas religiosos e outros grupos que se organizam em torno da pauta antitrans, o fato é que a ser transfóbico hoje traz muito mais alcance e notoriedade do que ser aliado ou defender os direitos trans.
À luz da morte de diversas pessoas trans no Brasil, no Reino Unido e nos Estado Unidos, onde tem ficado cada vez mais nítido o impacto das narrativas de ódio antitrans que circulam livremente nas redes sociais, tenho refletido sobre como uma cultura de ódio online e a agenda conservadora de figuras públicas, políticos e influenciadores contribuem para a degradação da segurança de pessoas trans. E o que está em jogo, efetivamente, é como essa agenda de ódio ajuda a criar um mundo onde a existência de pessoas trans é questionada.
É importante dizer que ainda não temos um debate público sobre crimes de ódio ou ferramentas legais para lidar com eles no país. E quando se trata de transfobia, vemos a indignação seletiva e o silêncio em relação a necessidade de incluir ações antitransfobia quando se discute a regulamentação das redes sociais no sentido de enfrentar as violência online. Quando se trata de transfobia muita gente pretende deslegitimar as denuncias ou descredibilizar as narrativas das vítimas, relativizando a violência que foram submetidas.
Entendo que a transfobia parte estruturalmente de ideais coloniais enraizados na constituição do país e culmina na patrulha constante sobre nossos corpos. Mas não podemos deixar de apontar e denunciar que ela tem sido usada por grupos cissexistas (ou transexcludentes) que atuam para a manutenção da cisgeneridade como única forma de se entender no mundo.
A internet reforça um comportamento histórico, social e cultural e amplifica a voz de quem usa o anonimato garantido pelas telas do computador para expor sua ira, desrespeito e violência — e que sentem prazer nisso.
Estando a frente de pesquisas sobre a violência contra pessoas trans nos últimos 7 anos, a partir da publicação de casos em jornais, mídias digitais e nas redes sociais, eu ocupo um lugar na primeira fila para a história em evolução de como a cultura do bullying (ódio transfóbico, injúria transfóbica e o cissexismo) online contribui diretamente para a violência offline contra pessoas trans. Tenho visto como minha vida pessoal e profissional tem sido afetadas por causa de perseguições infundadas de perfis conservadores e alinhados ao pensamento antitrans.
Hoje no Brasil, temos mais de 300 projetos de leis antitrans e 77 leis transfóbicas em vigor, há uma explícita tendência de retrocesso em relação aos direitos das pessoas trans e insistentes tentativas de institucionalização da transfobia em diversos âmbitos. Além disso, políticos e perfis antitrans tem radicalizado de forma prioritária uma agenda política contra nossas existências.
A jornalista Dani Avelar chama atenção para o crescimento exponencial dos novos projetos de lei — PLs transfóbicos. Porém esse número é apenas a expressão de um esforço articulado muito maior, que envolve alguns dos maiores partidos políticos brasileiros, os quais propuseram centenas projetos de lei somente no ano passado.
Não resta dúvida, com base nos dados disponíveis, que há uma tendência para intensificar e explorar o ambiente social criado por essas narrativas através do sofrimento das pessoas trans por meio de uma estratégia de segregação jurídico-social. Essa estratégia é conduzida por legisladores e grupos antitrans que parecem não estar comprometidos em tornar a vida das pessoas trans cada vez mais impossível de ser vivida livremente.
Por outro lado, a baixa taxa de aprovação dos projetos de lei propostos por esses legisladores (3,75%) sugere que seu foco principal não está na produção de resultados legislativos eficazes, mas sim em ganhar visibilidade, utilizando a dor das pessoas trans para manter seu apoio político e garantir presença na mídia. Isso pode incluir a proposição de legislação que, de forma evidente, viola os princípios constitucionais.
Narrativas virtuais, ataques reais.
Temos visto inúmeros casos de violência ocorrendo após a ataques direcionados aos direitos e as pessoas trans nas redes sociais ou nas tribunas legislativas e religiosas que tem gerado conteúdo orgânico para plataformas como Instagram, tiktok, X/twitter e afins.
Em um país onde enfrentamos altos índices de violência e violações de direitos humanos, com casos sendo publicados diariamente nas redes sociais, onde as ações governamentais tem sido insuficientes e/ou ausentes no sentido de proteger e garantir direitos a essa comunidade, e dificuldades para a efetivação das denúncias e o devido reconhecimento da transfobia como qualificador por parte de agentes de segurança e da justiça. Tudo isso aliado a omissão e os recuos do governo em relação a proteção anti transfobia e aos direitos da comunidade trans, junto a falta de acenos públicos, tem contribuído de forma direta para o acirramento deste cenário.
Tem ficado cada vez mais explícita a mobilização vinda do que tenho chamado de Gabinete do ódio antitrans[1] que tem se organizado para massificar essas narrativas violentas e degradantes, além de organizarem para perseguir, assediar judicialmente, atacar e tentar silencias qualquer menção aos direitos e as existências trans. O ecossistema de ódio antitrans (Dossiê ANTRA, 2024) nas redes sociais tem sido responsável por criar um ambiente social favorável onde a transfobia tem sido aceitável e que virou um dos temas mais lucrativos para esses perfis e figuras que escolheram o caminho dos ataques as pessoas trans, tendo a certeza da impunidade e o apoio (ou a omissão) de pessoas localizadas nos mais diversos campos políticos — inclusive antagônicos em outras pautas, mas que em relação a transfobia tem se encontrado em uma grande aliança que reforça a defesa do pacto da cisgeneridade.
A ativação de coletivos que promovem discursos de ódio e instigam a violência também achou terreno propício online. Atualmente, as pessoas fortalecem suas convicções e conectam-se com seus semelhantes na internet, criando verdadeiras milícias digitais e gabinetes de ódio, intensificando esse efeito de perseguição de um inimigo criado e a propagação de seus ideais violentos, onde as redes sociais apenas ampliam a voz desses grupos.
Se o padrão de agressão observado online é semelhante ao que se vê na vida real, tanto em forma como em conteúdo, e o que varia é a intensidade das reações das pessoas quando estão usando uma tela como intermediária. De fato, um grande número de indivíduos que não teriam a mesma coragem de responder de maneira agressiva e desrespeitosa em uma interação presencial se sentem livres e desinibidos nas redes sociais, por outro lado, ímpetos transfóbicos seguem sendo incentivados e isso faz com as pessoas se sintam confortáveis em promover ataques direitos à pessoas trans em espaços coletivos de sociabilidade, bares, festas e etc.
Existe uma ligação explícita entre as injúrias transfóbicas, as ameaças, o bullying transfóbico online e os ataques offline. De acordo com um estudo recente do Instituto Nacional de Saúde, os jovens LGBTQIA+ são mais propensos a sofrer formas anónimas de cyberbullying, e o cyberbullying que enfrentam é muitas vezes uma extensão do bullying offline.
E nos últimos anos tem ficado cada vez mais nítido do quanto o cyberbullying é um grande negócio, seja na conquistas de notoriedade ou de seguidores, ou ainda no direcionamento da violência contra alvos indicados em posts que se alastram na rede social — que segue sem respostas efetivas contra a transfobia.
O Facebook, Instagram e Whatsapp (da Meta), o X (ex-twitter) e o TikTok tem sido as plataformas onde mais se produz e dissemina pânico antitrans, atingindo milhões de pessoas diariamente. Um negócio lucrativo que vai além do ponto de vista financeiro.
A cada inserção antitrans que um deputado transfóbico levanta nas suas falas e publica nas redes, seu número de seguidores online e seu alcance aumentam. Mesmo o mais medíocre dos políticos ao escolher o ataque às pessoas trans como pauta, está ciente de que há grandes chances de garantir sua eleição no próximo pleito, e isso se agrava em períodos eleitorais. O mesmo tem ocorrido com influenciadores, páginas conservadores, figuras públicas de extrema direita e feministas transfóbicas.
Em 2022, a ativista britânica anti gênero Helen Joyce, ex-editora do The Economist , disse em um painel online na web que as pessoas trans são “um enorme problema para um mundo saudável” e que a sociedade deve trabalhar para reduzir o número de pessoas trans nos espaços públicos, mesmo que isso significa ir atrás de pessoas que passaram por uma transição feliz para que sejam levadas a uma destransição forçada.
A National Review publicou um artigo a favor de um vídeo recente de Trump sobre pessoas trans e nossos direitos. “Poucas coisas são mais fundamentais para a civilização do que as distinções básicas e imutáveis entre homens e mulheres”, escreveu o comentador conservador Nate Hochman. No artigo, Hochman endossa a proposta extremista do ex-presidente Trump para eliminar as pessoas trans da sociedade: uma proibição de cuidados de afirmação de género para todas as pessoas trans — crianças e adultos, legislação para declarar que existem apenas dois gêneros que são atribuídos no nascimento, imediatamente cessar todo o financiamento para qualquer programa federal que reconheça a existência de pessoas trans, proibir que fundos federais sejam destinados a transições de gênero e um direito privado de processar médicos que prestam cuidados de afirmação de género.
Hochman não está sozinho no uso da linguagem eliminacionista. Notório usuário de mídia social anti-LGBTQIA+, cuja conta tem milhões de seguidores, Libs of TikTok literalmente comparou pessoas queer e trans e seus aliados a baratas em uma entrevista de 2022 com Tucker Carlson.
O New York Times citou o ativista conservador de longa data Terry Schilling , que liderou o esforço para trazer as questões trans para o primeiro plano da agenda republicana, dizendo que o seu objetivo final é proibir os cuidados de transição para todos os americanos em qualquer idade, incluindo adultos. Schilling foi a força motriz na promoção da controvérsia dos esportes trans que se espalhou como um incêndio por todo o país no ciclo eleitoral de 2020.
Em 2018, a acadêmica transfóbica Sheila Jefferys disse num evento da Câmara dos Comuns do Reino Unido que as mulheres trans “ocupam parasitamente” os corpos das mulheres — apesar de, você sabe, viverem nos seus próprios corpos. No X/Twitter, a jornalista brasileira Patrícia Lélis teve exposta a sua ligação com a extrema direita e o lobby antitrans nos EUA quando passou a falar abertamente contra os direitos trans.
Lembro do caso da dupla sertaneja desconhecida que publicou uma música abertamente transfóbica em 2020, e viram seu número de seguidores e lucros em relação a música aumentar de forma desproporcional.
Cada vez que JKKKRowlling ataca pessoas trans, mais aplausos e apoio recebe de gente odiosa e seus perfis fake, e mais ataques são feitos em perfis de pessoas trans. E em 2024, JKKK disse que “mulheres trans fazem cosplay de uma fantasia misógina do que imaginamos ser uma mulher”, além de atacar diretamente a identidade de gênero de uma mulher trans, que gerou uma denuncia por transfobia contra a autora.
Rowling conhece o poder que ela tem. Em vez de refletir sobre as críticas que tem recebido, ela prefere usar indevidamente a sua influência para encorajar o abuso transfóbico contra pessoas trans e aliados.
Só este ano, vimos ela afundar-se ainda mais na ideologia antitrans. Sua retórica tornou-se radicalmente transfóbica e ela se recusa a reconhecer o dano que está causando, fincando o pé, enquanto pessoas trans e aliados são abusados em seu nome.
Quando a Djamila Ribeiro publicou um texto antitrans reproduzindo exatamente o mesmo discurso da JKKK, ao afirmar que haveria um “suposto apagamento de mulheres em curso”. O que se viu após esse episódio é um fenômeno onde outras figuras antitrans tem saído do armário e um acirramento das narrativas antitrans, assim como a radicalização das dissidências entre feministas transfóbicas e transfeministas. Ela até pode não ser exatamente “antitrans”, mas a exposição deliberada da transfobia reproduzida em seu posicionamento fortaleceu e encorajou outras pessoas a fazerem o mesmo.
Mas não para por aí. Os criadores de conteúdo de direita e perfis antitrans alimentam-se uns dos outros num canal de ódio esmagador que transforma o perigo trans em dinheiro. Esses meios de comunicação de massas constantemente alimentam o medo e estimulam seus seguidores a assinar e clicar em anúncios, a comprar seus livros e a enviar-lhes doações.
Os influenciadores antitrans colocam em risco as vidas trans como seu modelo de negócios. A NBC News informou recentemente que, desde novembro de 2020, houve 21 ameaças de bomba em escolas, hospitais e outras instituições logo após uma das postagens de Libs of TikTok. (Raichik nega que tenha tido alguma coisa a ver com essas ameaças, dizendo em um tweet sobre a história da NBC News: “essa narrativa de ‘ameaça b*mb’ está realmente ficando velha”.) A violência que leva à morte de pessoas trans e não-binárias, como o jovem Nex Benedict acontecem enquanto influenciadores como Raichik recebem seus pagamentos das plataformas.
A popularidade dessas pessoas está diretamente ligada aos ataques que elas tem feito às pessoas trans.
Como tem sido denunciado nos dossiês da ANTRA anualmente, a extrema direita assumiu como prioritária uma agenda política antitrans. E isso tem se intensificado e radicalizado a violência na rede social, com impactos deletérios no dia a dia das pessoas trans.
O discurso conservador e essencialista de gênero online contribui para a desumanização das pessoas trans, o que por sua vez estimula a violência contra nós. de várias partes nos leva para trás da cortina do dinheiro obscuro, organizações de direita, figuras radicais e ideologia extrema impulsionando a reação antitrans em todo o país. Expomos um aparato político altamente organizado, o que torna o futuro potencialmente mais sombrio para todos da comunidade LGBTQIA+, em especial às pessoas trans.
Além disso, no contexto político global onde se observa um aumento dos ataques contra a comunidade trans, urge que os compromissos assumidos junto aos movimentos populares sejam posicionados de forma firme, pública e inegociável. Se omitir e atuar para invisibilizar institucionalmente as pessoas trans é nos direcionar ao genocídio que segue ceifando vidas trans todos os dias.
Em todo o mundo, as pessoas trans e não binárias enfrentam níveis terríveis de ódio, discriminação e violência. No Reino Unido, temos assistido a um aumento nos crimes de ódio contra pessoas trans . As taxas de tentativas de suicídio entre jovens trans são surpreendentemente altas .
Existe uma preocupação generalizada de que a retórica agora usada para estigmatizar as pessoas trans espelhe os mesmos ideais usados em épocas anteriores para espalhar o medo e a hostilidade em relação as pessoas negras, assim como à comunidade LGBTQIA+ em geral.
Talvez seja uma tarefa demasiado difícil tentar descrever como é existir num mundo onde tantas pessoas pensam que somos um problema que precisa de ser resolvido com sua eliminação ou uma praga que precisa de ser exterminada.
E ao invés de permitir que as pessoas trans levem vidas de forma digna, essas pessoas decidiram que as pessoas trans são inimigas reais das mulheres — pauta que passou a ser levantada pela extrema direita que tem assimilado ideais vindos do pensamento essencialista do feminismo radical. E que os problemas sempre têm soluções, e a solução aqui é que deveria haver menos, ou talvez nenhuma, pessoas trans no mundo.
A “solução” conservadora e de grupos antitrans para os direitos trans é em grande parte um projeto deliberado e eugenista. Pense nisso: se não há reconhecimento legal, segurança, se não há cuidados de saúde específicos e não há reconhecimento na sociedade em geral. Que tipo de vida isso deixaria para nós, pessoas trans?
As pessoas trans têm o direito à liberdade, à felicidade, à dignidade, à proteção do estado, de serem reconhecidas no gênero que se identificam e tratadas de forma adequada e humanizada.
A real inclusão e acolhimento das pessoas trans e travestis faz parte da construção de uma sociedade na qual pessoas de todas as origens sejam respeitadas e valorizadas. A única forma eficaz de derrotar o ódio é rejeitar todas as formas de discriminação e recusar toda e qualquer tentativa de desumanizar, excluir ou apagar existências.
E o desafio que temos hoje, seja no movimento trans, entre aliados e o campo progressista é qualificar a defesa da cidadania e dos direitos trans, de forma a romper com toda e qualquer narrativa que tenha sido levantada pela extrema direita e que vulnerabilize pessoas trans ou nossos direitos. Além disso, no contexto político global onde se observa um aumento dos ataques contra a comunidade trans, urge que os compromissos assumidos junto aos movimentos populares sejam posicionados de forma firme, pública e inegociável.
É fundamental, portanto, que este diálogo seja mediado de forma transparente e comprometida, e que as pessoas trans sejam reconhecidas e protegidas em todas as esferas da sociedade, inclusive pelos órgãos governamentais.
- Gabinete do ódio antitrans — É a mobilização de agentes que compõe o ecossistema antitrans (detalhado nos Dossiês da ANTRA) através da estratégia adotada por feministas transfóbicas em fóruns, chans e grupos privados (telegram, por exemplo) para traçar estratégias a fim de movimentar as redes sociais e gerar levantes para disseminar mitos, estigmas e pânico antitrans, assim como para assediar perfis diversos, incluindo perfis governamentais e figuras públicas, além de criar coletivos, grupos de pesquisa e perfis para massificar seus ideais contrários aos direitos trans.