Brasil: 15 anos no topo do genocídio trans

Bruna G. Benevides
6 min readNov 13, 2023

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O Brasil tem enfrentado um triste e alarmante recorde nos últimos anos: ser considerado o país que mais assassina pessoas trans no mundo, pelo 15º ano consecutivo, e a população trans não pode mais seguir silenciada diante dessa cruel realidade. E os dados constantes na atualização de 2023 da Transgender Europe, obtidos pela ANTRA, o pais segue amargando o posto do que mais informa dados dentre os países que registram esse tipo de informação.

Realizado pela equipe do Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT), o “Observatório de Pessoas Trans Assassinadas Globalmente” é um boletim da TGEU publicado anualmente por ocasião do dia 20 de novembro, data em que é celebrado o Dia Internacional da Memória Trans (TDoR — Trans Day of Remembrance). Desde que o relatório foi criado, em 2008, o Brasil assume com folga a liderança entre os países nos quais a transfobia faz o maior número de vítimas.

Os dados foram coletados entre 1º de outubro do ano passado e 30 de setembro deste ano. E dos 320 casos, pelo menos 100 aconteceram no país, o que quer dizer que de todo mundo, pelo menos 31% dos casos ocorreram no país. Apesar de manter-se na liderança, em relação ao ano anterior, houve uma queda de 2% no percentual de mortes, quando em 2022 a atualização mostrou 29% das mortes mundiais.

Informativo TGEU 2023

E como ocorre todos os anos, o perfil das vítimas permanece o mesmo sendo 80% de pessoas trans negras/racializadas, onde a maioria entre 19 e 25 anos, vivendo publicamente com identidades de gênero feminina — Travestis e Mulheres trans. De todos os casos com dados de idade disponíveis, três quartos (77%) tinham entre 19 e 40 anos. O meio com o qual foi cometido o assassinato revelou que 46% dos assassinatos relatados foram por armas de fogo, onde 48% das vítimas atuavam como profissionais do sexo. A América Latina e Caribe acumulam 73% dos casos, onde 31% de todos os casos ocorreram no Brasil e as ruas continuam sendo o espaço de maior incidência dos assassinatos.

Cabe destacar que, desde o início desse monitoramento, a vítima mais jovem de assassinato no mundo foi Keron Ravache, adolescente trans brasileira de 13 anos que foi brutalmente assassinada com requintes de crueldade no Ceará em 2021.

O cenário de violência contra pessoas trans no Brasil é profundamente preocupante em todos os ciclos de vida. A cada ano, centenas de vidas são perdidas em decorrência de crimes de ódio, transfobia e discriminação. A falta de políticas públicas eficazes e específicas para enfrentar esse quadro tem permitido que essa estatística trágica persista, tornando o Brasil um dos países mais perigosos para pessoas trans viverem.

Mapa assassinatos 2023 TGEU

E sendo um país altamente desigual, a violência se acirra cada vez mais contra grupos vulnerabilizados e empobrecidos: Jovens negros, mulheres vitimas de feminicídio e violências domésticas, pessoas LGBTQIA+ e outros acabam sendo os alvos diretos da violencias cruzadas, seja pela classe, raça, gênero, território ou mesmo a união desses fatores com o ódio passado de geração em geração contra sexualidades e identidades dissidentes, essa tem sido uma receita de morte que segue naturalizada como herança colonial.

A transfobia mobiliza as redes sociais, domina os assuntos de botecos à universidades e transita livremente entre esquerda e direita, passando por espaços progressistas, feminismos e outros que em sua atuação defendem a liberdade e o direito de ser quem se é, desde que a cisgeneridade siga inalterada. E o impacto disso é que a juventude trans está menos otimista sobre o futuro.

Dados Brasil

No Brasil, desde 2017 a Associação Nacional de Travestis e Transexuais tem lançado dossiês anuais sobre o mapeamento dessas informações, já que o próprio estado tem sido omisso e atuado de forma ineficaz na produção de estatísticas e politicas para mitigar o impacto dessas violências. De acordo com a ANTRA, em seu dossiê com dados de 2022, o perfil das vítimas nacionalmente se aproxima do que vem sendo revelado pela TGEU, onde 80% das pessoas trans assassinadas são negras e 95% foram reconhecidas como travestis ou mulheres trans (identidades de gênero femininas), e tinham média de 29 anos. Em 2023, a ANTRA já mapeou pelo menos 94 assassinatos de pessoas trans entre 1 de janeiro e 31 de outubro de 2023.

O dossiê com dados de 2023 será publicado pela ANTRA em Brasília/DF, no dia 29 de janeiro de 2024 — Dia Nacional de Visibilidade trans, como tem ocorrido desde sua primeira edição.

Desafios

E nesse sentido, o ódio as pessoas trans tem organizado um ecossistema de forcas muitas vezes antagônicas em torno de defesa de um ideal que promove e celebra apenas a vida daquelas pessoas que seguem a cartilha da norma: ser aquilo que foi determinado no nascimento, não questionar o heterroterroismo e não confrontar as regras rígidas de ser homem ou mulher, do contrário, você estará assumindo sobretudo a responsabilidade pela violência que bate irá te acompanhar desde os primeiros momentos em que for percebido como um corpo dissidente, até mesmo depois de sua morta quando sua identidade será novamente assassinada em uma violação da sua identidade.

A população trans brasileira está exausta da inércia do Estado diante dessa realidade alarmante. É hora de cobrar ações concretas e efetivas para reverter essa situação e principalmente de as pessoas que não são trans se levantarem contra as violações dos direitos humanos, as violencias, os estupros corretivos, os diversos assassinatos (sociais, físicos, psicológicos ou todos juntos).

A violência contra pessoas trans não pode ser tolerada por mais tempo. A população trans brasileira exige ações imediatas do Estado para garantir sua segurança e dignidade. A mudança é possível, mas só será alcançada com o comprometimento do governo, da sociedade civil e de cada cidadão em prol de um Brasil verdadeiramente inclusivo e respeitoso. A vida de pessoas trans importa, e é hora de agir para protegê-las.

É passada a hora de serem organizadas respostas do Estado para reverter essa situação e promover políticas públicas eficazes que garantam a segurança e o respeito à vida de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.

É crucial que hajam investimento em programas de educação que promovam a diversidade de gênero e combatam a transfobia desde as séries iniciais. É necessário treinar as forças de segurança para lidar de forma sensível com a população trans e combater crimes de ódio de forma qualificada e eficaz. Além disso, a coleta de dados sobre crimes transfóbicos deve ser aprimorada. É importante garantir acesso digno à saúde, incluindo tratamentos de saúde sexual e reprodutiva, saúde mental em uma perspectiva despatologizante e os devidos tratamentos para (re)afirmação de gênero — que já são acessíveis e usados por pessoas que não são trans.

Estratégias que promovam a inclusão e permanência de pessoas trans no mercado de trabalho e combatam a discriminação no ambiente profissional são cruciais. Reforçar leis que proíbam a discriminação por identidade de gênero, com punições rigorosas para crimes de ódio se fazem urgentes. Assim como criar centros de acolhimento e apoio para pessoas trans em situação de vulnerabilidade, como aquelas que foram expulsas de suas casas, migrantes ou em situação de rua. Ouvir as vozes da comunidade trans e das organizações que a representam é essencial para a construção de políticas públicas eficazes.

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Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!