Carta para Angela Davis…

Bruna G. Benevides
4 min readOct 24, 2019

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Estimada Pantera, aqui quem fala é Bruna Benevides, travesti.

Estamos muito felizes por sua vinda ao Brasil. Receber alguém de sua importância é um marco em nossa história. Especialmente nestes tempos de fascismos e autoritarismos. Você trás um ânimo a nossa luta, agrega seu conhecimento e sua história para jogar luz sob aquelas pessoas que estão com medo, desacreditadas de que a luta vale a pena.

Eu queria muito ter podido lhe encontrar pessoalmente, lhe dar um abraço e poder falar rapidamente de nosso trabalho aqui em uma das atividades que participou. Imagino que deve estar cansada, mas feliz em ver quanta força temos aqui por estas bandas.

Tem sido as lutas das mulheres no país e da nossa capacidade de organização que vem fazendo um movimento de resistência desde as ultimas eleições. ELE NÃO, foi o maior movimento de massas contra a eleição do atual governo, e contou com a organização de mulheres, negras, LGBTI e muitas outras, famosas e anônimas, que estava ali honrando a memória de nossas ancestrais em muitas cidades do país.

Tenho lido, acompanhado e visto a cobertura de suas atividades, e fico muito feliz em ver o quanto você trás em sua fala a importância do olhar do feminismo para nós, mulheres trans, de maioria negras, pobres e invisíveis. E sobre como a violência de gênero nos alcança com mais força. E eu lhe agradeço pessoalmente por isso. Fale mais, nos chame para conversar.

Os feminismos brasileiros precisam aprender e respeitar o lugar das mulheres trans dentro do feminismo. Veja bem, você vem aqui e fala. Fala repetidas vezes. As pessoas aplaudem, gritam, mas simplesmente não ouvem, ou ignoram, inclusive que podemos falar por nós mesmas. Ainda temos um grande caminho pela frente e contamos com aliadas como você — e outras que estão de mãos dadas conosco.

Certa vez você disse que quando uma mulher negra fala, ela move as estruturas da sociedade. Imagine você, quando uma mulher trans puder falar por si, de igual para igual com outras mulheres, o que seria capaz de acontecer?

Se não temos hoje uma Lélia Gonzales Trans, é porque somos assassinadas antes dos 35 anos. Esta é a nossa estimativa de vida.

E eu tenho me perguntado, pensando sobre Lélia, se o lixo pode falar. Pois é sobre isto que estamos refletindo. De qual narrativa importa. As pessoas tem falado muito sobre pessoas Trans. Pesquisado, ocupado espaços, lançado livros sobre nós. Mas no dia a dia, não se relacionam conosco fora das linhas escritas ou das mesas de debates. Quantas pessoas trans estiveram nos espaços que transitou ou esteve, em suas conferências, nas comitivas ou organização, e puderam ouvir você pessoalmente ou poder conversar com você nestes dias? Você sabe porque não conseguimos participar?

Majoritariamente o movimento trans é negro. Composto por muitas pessoas que não tiveram oportunidade de estudar, se formar ou ter títulos. Mas nossas conquistas, alcançadas por muitas destas mesmas pessoas, mostram através de dados que a situação geral das pessoas trans no Brasil é assustadora.

Somos referência mundial no levantamento destes dados e na conquista de alguns direitos, que hoje correm riscos de serem cassados. Temos sido pioneiras na publicação de materiais sobre a violência transfóbica e a situação dos direitos humanos das pessoas trans no Brasil, América Latina e no mundo. Mas quase nunca, pessoas trans são lidas, citadas ou temos nossa escrita referenciada.

É tudo lindo falar sobre a interseccionalidade sob a ótica acadêmica. Mas a realidade é ainda cruel conosco. Não temos garantida a representatividade de mulheres trans em nossos espaços.

Além de enfrentar os desafios que o machismo capitalista, cristão e racista nos impõe no dia a dia. Temos sido perseguidas, silenciadas e invisibilizadas também em atividades do 8M, veja bem, atividades de mulheres, feitas por mulheres. Algumas alinhadas ao feminismo cissexista, que se diz radical, mas que é colonial. Temos sido proibidas e retiradas de espaços de mulheres, por mulheres a serviço do patriarcado. Perseguidas no uso de banheiros comuns as mulheres. Por acaso não somos mulheres? Eu não sou uma mulher?

Imagine você, Angela, que no ultimo mês das mulheres no Rio de Janeiro, fomos proibidas de falar ou ter representação em um espaço que é construído por — nós — mulheres. Não fossem as mulheres negras, aliadas, nós não conseguiríamos resistir sozinhas. Nossa luta ainda é por sobrevivência.

Certa vez, Erica Malunguinho — a primeira deputada trans do Brasil, única eleita no voto direto em 2018 disse:

“A Transfobia, é um vício BRANCO e precisamos esvaziar essas práticas violentas de nossos quilombos. É nosso dever enfrentar as práticas violentas da branquitude que insistem em permanecer em nossos espaços.”

Você falou de mulheres feministas Brasileiras e do quanto aprende com elas. E elas são realmente incríveis. Mas você precisa conhecer e se possível conversar com Keila Simpson, Jovanna Baby, Megg Rayara, Alessandra Makkeda, Neon Cunha, Indianare Siqueira, Andrea Brazil, e tantas outras. Saber da história de outras que se foram, como Claudia Wonder, Brenda Lee, Andreia de Maio, Claudia Celeste, Janaina Dutra, Marcela Nascimento, mulheres que transformam suas mortes em vida para nós que seguimos na luta. Mulheres fortes, raivosas, tidas como violentas na luta e defesa radical de nossos direitos, e indignadas com a situação de nossa população que tem muito a contribuir para as lutas feministas.

Querida Angela, vou me despedindo por aqui. Eu realmente espero que sua visita no Brasil tenha sido extremamente feliz e proveitosa. E desejo que sua força, garra e bondade sejam faróis para a luta do feminismo contra o racismo, a transfobia e toda forma de opressão.

Gratidão por sua existência e por dedicar sua vida a nossa luta. A luta de todas as mulheres!

Este texto foi disparado após um longo diálogo com a Profa Sara Wagner York que sempre me desafia e provoca meus sentidos para além daquilo que os olhos podem enxergar. Para que não foquemos no brilho dos holofotes e esqueçamos de quem está por trás carregando as estruturas nas costas, muitas vezes em silêncio. #TransLivesMatters

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Bruna G. Benevides
Bruna G. Benevides

Written by Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!

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