Como tenho sobrevivido em quarentena?
Difícil chegar até aqui e escrever sobre mim…
Quem me conhece ou acompanha sabe que sou bem reservada em relação a questões pessoais. Mas acredito que assim como eu, muitas pessoas também tem sido sobrecarregadas e se sentem culpadas em ter que dar conta de tudo e ainda ter que fazer parecer que está tudo bem. E a verdade é que não está, ninguém está. E o que vemos na tela é apenas uma das mil faces que escolhemos como mostrar e porque mostrar.
Esta reflexão pretende falar sobre as urgências, de quem e para quê?
Até aqui, já estou há mais de 70 dias cumprindo rigorosamente a quarentena. E mesmo eu sendo uma pessoa que pode estar em isolamento social em casa, eu não ignoro a situação das pessoas que me rodeiam e as lutas que encampo.
Cheguei ao ponto em que eu não acho que tenho que fazer todos os cursos sobre teoria de gênero ou política do mundo. Me formar em ciências da internet ou refutar a teoria da terra plana. Confesso que fico cansada só de olhar o feed de muita gente por aí. Não acho que devo ler aquela pilha de livros que está empoeirada no canto do quarto ou ainda me tornar uma musa fitness do Instagram. Não quero saber do lançamento da versão ilustrada do Harry Potter — aliás, foi punk descobrir que JK Rowling cada vez mais está alinhada com o feminismo trans excludente. Que merda!
Não acho que eu vou aprender inglês para adultos no novo método revolucionário ou terei que escrever um livro sobre as memórias da pandemia. Dizem que não seremos mais os mesmos, eu tenho certeza de que eu não sou a mesma de ontem. Não estou interessada em saber qual a teoria feminista mais atualizada e não acho que tenho que fazer tudo que vinha procrastinando nos últimos tempos só porque teoricamente “tenho mais tempo livre”. Livre pra que?
Há vários momentos onde simplesmente eu não sei dizer a data ou em que dia estou sem consultar o calendário. Tenho dormido mais tarde do que gostaria, mas também tenho acordado mais tarde do que deveria. Levanto no susto, exausta. E levo mais tempo até me tornar produtiva, o que dura pouco tempo até que novamente esteja cansada. A cabeça está pesada e o corpo dolorido. Apesar de conseguir me concentrar nas coisas que tenho feito.
Minha rotina virou uma central de atendimento dos mais diversos assuntos, intercalada com projetos e ações para minimizar os impactos da crise do COVID-19 na vida de pessoas invisíveis. Além das atividades que tenho construído e os materiais que temos produzido, as centenas de reuniões intermináveis e as milhares de live.
Ainda tem nas campanhas de arrecadação distribuição de alimentos e a organização do curso pré-vestibular social que eu coordeno há cinco anos e que temos o desafio de transformar em uma versão on-line. Mesmo diante de tudo que temos visto em relação ao Enem.
No meio disso tudo, ainda tento conversar e ouvir amigues que estão sozinhes. Ligar para uns, responder outres. Mas confesso que muita gente fica esperando alguns dias até que eu consiga responder as mensagens que chegam no Instagram, Facebook, messenger e WhatsApp, pessoal e institucionais. Neste momento tenho 26 conversas que eu ainda não consegui responder, nem visualizar.
Não participo de grupos de fofoca, que propagam ódio ou incitam disputas.
As duas únicas vezes que zerei o número de conversas no WhatsApp, durou o tempo de beber um copo d’água para que outras dezenas de mensagens se acumulassem no painel de notificações. Tenho recebido uma média de 1000 mensagens por dia, nos mais de 30 grupos que faço parte no WhatsApp - definitivamente o brasileiro não sabe utilizar grupos. Eu levo a maior parte do meu dia tentando ler, acompanhar e interagir com estas mensagens, especialmente as que recebo no meu privado. As vezes chego a ficar horas sentada no vaso tentando responder as mensagens enviadas entre o horário que deitei para dormir e momento em que acordo. Levanto, pego o celular e vou ao banheiro. E quando me dou conta, já é noite e caio exausta na cama. No dia seguinte tudo se repete, quase que automaticamente.
Ter que diariamente acordar com novas incertezas, as notícias pesadas destes tempos de crises humanitárias e a lambança feita pela cúpula de governo, causa muito estresse e me deixa muito assustada sobre como iremos reorganizar as fileiras de nossa luta e tornar nossa atuação mais eficaz nesse período.
Desde o início da pandemia, houveram diversas fases que foram se modificando ao longo dos dias, das semanas e meses. Fases que tem se adequando da mesma forma que meu corpo tem reagido ao cansaço. Tenho sido constantemente confrontada com o excesso de trabalho e a sobrecarga colocada sobre os ativistas em geral. E me vem a pergunta: Quem cuida de quem cuida?
Até me dar conta de que eu estava completamente perdida pela incerteza geral e desorganizada pela desorganização dos outros. Eu que sou super comprometida e disciplinada para executar/cumprir todos os compromissos que eu assumo, tenho visto que a vida está uma bagunça. Percebi que todos os meus horários e ações estavam diretamente relacionadas a terceiros. E foi aí que eu decidi repensar como tornar os meus dias mais leves e mais meus, se é que isso é possível.
A primeira coisa que fiz foi delimitar o tempo em que ficaria online no Facebook e Instagram rolando feed. Falando em rede social, meu telefone fica a maior parte do tempo em modo avião para evitar ligações. Silenciei toda forma de notificação dos apps, de todos. Agora é necessário que o abra o aplicativo e verifique se há novas atividades. E me policio para abrir cada vez com um espaço maior de tempo.
Tenho pouquíssimo tempo para interagir nas redes sociais e por isso, tenho evitado arrumar treta na internet, lançar ou responder shade, ironias ou posts pra lacrar. Aliás, qual a sua responsabilidade na Treta que você se decide participar??
Quando respondo qualquer post que não seja meu, deixo de acompanhar a discussão imediatamente ou fazer réplica, tréplica. Aliás, não respondo a todas as pessoas e finalmente aceitei que nem todos merecem uma resposta, seja ela qual for. Respondo mensagens na hora que dá. Emails idem.
Não leio os comentários posteriores ao meu. E nos meus posts apago comentários que discordam de forma irônica ou violenta. Deixei de curtir gente e páginas tóxicas. Sempre que alguém me marca em alguma treta ou me envia algo no privado sobre páginas de internet, minha primeira ação é bloquear a página enviada.
Procuro evitar comer com o telefone na mão e o não levo para a cozinha. Tenho comido bem melhor esses dias, pois o meu marido cozinha para ocupar o seu tempo como estratégia de cuidado com a saúde mental e isso tem me beneficiado bastante. São sempre ótimos pratos e uma novidade gostosa diferente. Neste exato momento ele está fazendo um bolo de chocolate. Eu deitada na cama ouvindo algo aleatório no YouTube e escrevendo. Não sei que horas são. Antes de dormir coloco o telefone no silencioso e desabilito a internet.
Tenho me ocupado com algumas poucas ações que exigem aparição pública (online) pois me permite me arrumar e cuidar melhor da minha imagem. Tem sido importante perceber que quando eu me arrumo e me maquio, meu humor muda drasticamente me fazendo sentir mais bonita e atraente. Fico horas no espelho me admirando. Outro dia, maquiada e de cabelo arrumando falei para uma amiga: “Eu queria ser sempre assim!!” E ela me respondeu que eu sou assim!! Foi lindo… Inclusive nesses dias eu tenho aproveitado para atualizar os feeds nas redes sociais. Muah!
Diariamente faço chamada de vídeo para minhas amigas ou pessoas que gosto de conversar para rirmos. E é proibido falar sobre política. Eu as procuro quase sempre de surpresa. Esses dias estávamos vendo cenas de filme pornô de diversos gêneros, e alguns videos da Rita Benneditto sendo transmitidos em uma plataforma fechada para seis pessoas. Rimos horrores e eu tenho certeza que aquele dia todas fomos dormir mais alegres. Tenho buscado me reconectar com amigos que perdi o contato com o tempo e fico atenta as algumas pessoas na rede social para acompanhar como estão.
Evito competitividade tóxica na internet e em programas que escolho assistir. Assisto RuPaul Drag Race sem querer que as coisas sejam do meu jeito. Na verdade eu assisto exclusivamente pelos looks da passarela. Nada mais ali me interessa. É somente o meu momento de ser fútil e lembrar da época que eu fazia show de drag. Yes, bitch!!!!
Eu vejo filmes, séries, desfiles de escolas de samba, desfiles de moda, show da Victorias secret, turnês de artistas que gosto, ouço músicas antigas que me lembram coisas/épocas boas. Bicha, a turnê Dangerous do Michael Jackson é MARAVILHOSA!!! Assisto filmes da minha infância, especialmente os de terror que eu tinha medo. Também vejo filmes repetidos pois eu tenho muita dificuldade em lembrar das histórias, por mais recentes que tenha assistido. É sempre uma emoção nova quando estou reassistindo algo. Esses dias vi a primeira versão da Hora do Pesadelo — Nanciiiiiiii!
Tenho uma programação de lives de artistas que gosto. Os de forró são os que mais vejo. A noite, todos os dias estou vendo alguma. Fiz uma lista e quase sempre estou vendo algum “show” comendo algum petisco ou bebendo algo bem de leve. Aliás tem bebido vinho quase diariamente. O Safadão tá bem gato né? Nossa, na live do Luan Santana eu espumei….
Vez ou outra recebo mensagem sobre a minha família e as vezes fumo um charuto pra relaxar. Acho que está na hora de fazer o cabelo. Mas as unhas eu não tenho ligado tanto. Sem culpa. Não tô a fim de participar das mil campanhas e correntes que surgem a cada dia. Só mesmo a militância que ainda têm sido difícil organizar pela quantidade de demanda que temos recebido.
Mas realmente, se perguntarem como tenho passado, eu nem sei dizer nada diferente de: Estou adaptada a este momento, apesar de sentir faltar de algumas pessoas que costumo encontrar e das viagens.
E se tem uma coisa que aprendi neste período, é que a urgência dos outros é exclusivamente deles. Não sofro mais por isso. Faço o que é possível e confortável, para mim. Cuido da minha saúde mental e invisto no autocuidado com alguns dos elementos que trouxe até aqui.
Estou há dias para escrever este texto. E me dei conta que tenho secundarizado a minha própria existência, além de estar deixando as minhas necessidades de lado. Esses dias meu marido falou que estava com saudade pois havia alguns dias que não nos víamos, mesmo estando juntos na mesma casa e dividindo a mesma cama todas as noites. Ontem eram quase 2h00 da manhã eu estava fazendo um formulário para as inscrições em um projeto.
Ainda estou aprendendo, e até que tem funcionado. E é assim que tenho — tentado — sobreviver a mim, a vocês e a eles…