Desvelando uma farsa: 10 mil tweets, transfobia e os perigos da patrulha de gênero

Bruna G. Benevides
12 min readAug 3, 2024

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Lin Yu-ting, de Taiwan, à esquerda, e Imane Khelif, da Argélia

O que inicialmente parecia uma reação orgânica acabou revelando um ataque transfóbico politicamente coordenado pelo fato de Imane e Lin não serem femininas o suficiente para o olhar ocidental.

No dia 1º de agosto, a rede social X se encheu de mensagens transfóbicas contra Imane Khelif (uma mulher cisgênera) que venceu a boxeadora italiana e ex-policial Angela Carini em uma luta que durou 46 segundos, pois a italiana se retirou chorando, insinuando que não foi uma luta justa ao dizer “nunca na minha vida me bateram tão forte. Depende do Comitê Olímpico Internacional julgar”. A partir desse momento, ganhou força uma grande onda de desinformação e transfobia que rapidamente se espalhou nas redes sociais, alimentada especialmente por figuras como JK Rowling, Agustín Laje, Javier Milei, Nikolas Ferreira e o Elon Musk (dono da rede social X), que recentemente mentiu sobre sua filha trans em um podcast e retirou a proteção contra transfobia na rede e ainda “criminalizou o uso da palavra cisgênero/cis”. Assim como páginas terfs e outros grupos alimentados para ideologia transexcludente.

O que aparentemente seria uma reação de indignação motivada por transfobia contra uma atleta que foi intencionalmente acusada de ser trans, não foi. Foi um ataque coordenado no X que já vinha sendo construído desde, pelo menos, 27 de julho e continua até hoje com a mesma mensagem de ódio, reproduzida em milhões de contas a nível global.

Só o nome de Imane gerou mais de 2,3 milhões de menções no X até a manhã da última sexta-feira. Assim começou a se instaurar a mensagem de que Imane, uma mulher cisgênera, seria uma mulher trans que poderia ter matado Carini no ringue. Algo visto como um crime imperdoável, que abriu margem para diversas violências e escancarou para o mundo a forma vil e hedionda que grupos de ódio articulam a transfobia que a comunidade trans tem que conviver todos os dias.

E tudo isso foi baseado em sua expressão de gênero não-normativa, na patrulha de gênero, e no pânico antitrans que tem trazido vários problemas à segurança de mulheres cis, lésbicas desfem — geralmente negras, e outras pessoas fora do padrão de feminilidade tóxica que tem sido defendido como métrica para promover perseguição contra pessoas trans e onde o racismo tem sido um componente presente na maioria dos casos. Mesmo Serena Williams, Michelle Obama, Brigite Macron e Lady Gaga já foram vítimas da “transinvestigação”- nome dado a tática em que são levantadas dúvidas sobre a identidade de gênero de mulheres que não tem aparência “feminina” para atestar que ela não seria “mulher de verdade” e por isso só poderiam ser trans, ou ainda "um homem"(sic).

Considero que o acirramento dessa ação política de patrulha nos últimos anos tem funcionado fortemente como uma reação ao avanço da conquista de visibilidade, direitos e de espaços pelas pessoas trans, operando através da violência para barrar esses avanços, gerando ainda mais violências e humilhações públicas. Casos de ataques, abordagens vexatórias, violências físicas e até assassinato tentado tem se tornando constantes no mesmo momento em que a transfobia passa a ser uma agenda politica da extrema direita e suas alianças antitrans. Nada disso é novo e considero que vale muito a pena a leitura do dossiê sobre violência contra pessoas trans onde apresento um capítulo sobre essa discussão.

Acompanhe a seguir como se deu esse processo a partir do trabalho de pesquisa feito pelo portal Volcanicas com a ajuda do DFRLab, que rastreou a origem desse levante global transfóbico e descobriu mais de 10 mil tweets na rede social “X” que replicavam a mesma mensagem de ódio.

27 de julho.

A conta do Reduxx, um portal “pró-mulher” focado em divulgar notícias transfóbicas, compartilhou no X uma mensagem com link para um artigo em seu próprio site indicando que 2 atletas que competem como “boxeadoras” (entre aspas) que competirão em Paris 2024 haviam sido desqualificadas anteriormente do Campeonato Mundial Feminino por terem “cromossomos XY”, referindo-se a Imane e à taiwanesa Lin Yu-Ting. Desde então, a especulação começou, visto que não existe nenhum documento que suporte tal afirmação.

28 de julho.

Enquanto contas abertamente transexcludentes como ContraBorrado difundiam a desinformação publicada pelo Reduxx, faltando 4 dias para a luta, no X já aparecia uma movimentação com a hashtag #IStandWithAngelaCarini em apoio à boxeadora italiana, advertindo que ela enfrentaria Imane Khelif, que havia “falhado em testes de gênero” e chamando antecipadamente para protestar por uma luta “injusta”:

“Ela é @Angelacarini98. Nesta quinta-feira, 1º de agosto, ela enfrentará Imane Khelif no ringue de boxe, Khelif anteriormente foi suspensa do boxe feminino por não passar em um teste de gênero” #IStandWithAngelaCarini — Intencionalmente manipulando a informação para sugerir que ela seria “um homem”. Afirmação também publicada por Aline Borges, perfil focado da disseminação de conteúdos contra pessoas trans.

30 de julho.

A direita e o governo italiano também estavam agitando os discursos transfóbicos, pedindo a desqualificação de Khelif, sugerindo que se Carini subisse no ringue, a argelina a mataria. Dois dias antes da luta, Matteo Salvini, Vice-primeiro Ministro e Ministro de Infraestruturas e Transportes da Itália, começou a disseminar a ideia de que Khelif era uma mulher trans que mataria Carini no ringue.

1º de agosto.

Após a luta, que durou 46 segundos, Meloni declarou que Imane tinha “muita testosterona” e Matteo Salvini reforçou a ideia de que Imane era trans. A Primeira Ministra da Itália, Giorgia Meloni, afirmou: “Com esses níveis de testosterona, esta não é uma competição justa. Não se deve permitir atletas com atributos masculinos em competições femininas”. No entanto, Meloni não tem como confirmar isso, pois a Associação Internacional de Boxe apenas afirmou que, nos testes de março de 2023 (Campeonato Mundial de Boxe Feminino em Nova Délhi), Khelif “não cumpriu os critérios de elegibilidade para participar da competição feminina”. Sabe-se que NÃO foi realizado teste de testosterona, apenas análises laboratoriais, e o restante é confidencial (ninguém teve acesso). Também é importante lembrar que sobre Umar Kremlev (presidente da IBA) há muitos questionamentos sobre seu discurso de ódio contra a comunidade LGBTQIA+. Meloni foi apoiada por Eugenia Roccella, ministra da Família, Natalidade e Igualdade de Oportunidades da Itália e, novamente, por Matteo Salvini.

O primeiro tweet saiu da conta @LogicLitLatte às 8:57 am (GMT-5). E rapidamente, outras contas começaram a replicar a mensagem completa ou parcial, seguidas de deturpações e juízos de valor, todos com teor transfóbico. Somente no dia 1º de agosto, a mesma mensagem foi postada 6.496 vezes. A última conta a reproduzi-la o fez às 11:57 am (GMT-5). Até a manhã de sexta-feira, 2 de agosto, esse primeiro tweet foi reproduzido um total de 10.045 vezes apenas na rede social X. Majoritamente por perfis de conservadores, ligados a extrema direita, grupos antitrans, feministas radicais e outros perfis cissexistas.

Rapidamente a discussão tomou os principais meios de comunicação, a nível global, que passaram a publicar informações não verificadas ou de fonte duvidosas. Aqui no Brasil, rapidamente a extrema direita assumiu a dianteira, apoiada por feministas radicais e influenciadores transfóbicos. Chegando a entrar nos trendig topics global.

2 de agosto.

Continuam as mensagens predeterminadas: “Um homem batendo em uma mulher na frente do mundo. A luta durou 45 segundos antes de ela desistir com uma suposta fratura no nariz”. O primeiro tweet desta mensagem saiu da conta @Suhailfayaz71 exatamente à meia-noite.

Neste novo episódio, várias figuras políticas mundiais conhecidas por seu discurso anti-direitos também se envolveram na desinformação, como Isabel Díaz Ayuso, presidente da Comunidade de Madrid, América Rangel, transfóbica e deputada eleita do Partido Ação Nacional no México, e o empresário Ricardo Salinas Pliego. Esse ataque chama nossa atenção, pois, normalmente, as fazendas de bots custam caro e a coordenação simultânea também.

No artigo “O terfismo: um apagamento contra as pessoas trans”, é destacada as alianças da direita mundial e setores mais conservadores (incluindo, é claro, o Vaticano) com o discurso transexcludente que lhes permitiu cooptar a agenda feminista. Assim como vale apontar a transfobia crescente em setores dos feminismos.

Mas o ataque coordenado não teria tido o mesmo alcance e impacto sem a (ir)responsabilidade e falta de ética jornalística de meios de comunicação internacionais, regionais, nacionais e, em menor medida, locais. Como destacou a crítica mexicana de mídia e jornalista digital Danielle Cruz em sua Newsletter “Crônica da transfobia midiática: O déjà vu do discurso de ódio” (e anteriormente no livro Polarização e transfobia), a cobertura dos temas LGBT+ tende a seguir a seguinte dinâmica:

“Meios de extrema direita e personalidades anti-direitos nas redes sociais publicam algo descontextualizado e é só uma questão de tempo até que meios nacionais retomem isso com todos os preconceitos desses personagens. No caso da notícia de Imane Khelif, tudo começou com contas transfóbicas nos Estados Unidos e na Inglaterra, que retomaram a luta de 2022 entre Imane e a boxeadora mexicana […] De [meios conservadores] até meios supostamente ‘críticos’ […] replicaram duas narrativas […]: i) Aceitar como fato (com uma distância editorial dizendo que ‘acusam nas redes’) que Imane é trans; e ii) Considerar que há uma ‘polêmica’ em torno de sua identidade de gênero, ambas atravessadas por estratégias de ragebait (tática de clickbait usada para gerar alcance) e desinformação que não só evidenciam a prioridade desses meios, mas também a nula preocupação que têm pela ética jornalística e ‘a verdade’, que sempre repetem até o cansaço”.

Como se pode ver nas observações de Cruz, a discriminação contra a boxeadora Imane Khelif não apenas demonstrou — mais uma vez — a existência de um ataque sistêmico e coordenado contra a comunidade trans, em especial contra mulheres trans, mas também que as redações continuam sendo cúmplices da violência não apenas contra as populações trans; mas também contra quem “não cabe” na definição hegemônica, racista, xenófoba e biologicista de “mulher”.

Não se pode ignorar a participação de Elon Musk, dono do X, na disseminação desse boato anti-direitos que serve para fomentar pânicos morais que apresentam as pessoas trans como um perigo para as mulheres cis. O controle da narrativa, pelo menos no X, está concentrado nas mãos de grupos anti-direitos e “críticos de gênero” — que inclusive foram reconhecidos como grupos de ódio pela ONU Mulheres.

Este ataque coordenado também revela a pobreza ideológica do terfismo e das feministas radicais, assim como de ativistas antitrans que não são feministas, pois, como pudemos observar, não basta mais “ter vulva” para ser “uma mulher real” ou “biológica”, como afirmaram erroneamente até agora. Parece que o novo objetivo é traçar um limite alegórico cromossômico e nos níveis fantasmagóricos de testosterona, como se quisessem impor um regime de bio-vigilância para determinar o gênero das pessoas — ignorando que mulheres cis também produzem o hormônio que erroneamente é chamado de “masculino”.

Há especulações (algumas poucas até bem-intencionadas) de que Khelif seria “intersexo por ter altos níveis de testosterona” (sem provas e com base em suposições), mas isso interpreta de forma equivocada as identidades trans. Pessoas trans não se identificam com um gênero contrário ao seu sexo biológico, pois o “sexo biológico” é um espectro mais amplo e sua classificação binária é uma construção social. As identidades trans são assumidas de um gênero diferente ao que lhes foi atribuído ao nascer, ou seja, opõem-se a um diagnóstico externo sobre seus corpos, uma atribuição cultural, e não a uma suposta condição biológica.

A verdade é que Imane Khelif não é uma mulher trans, tampouco um homem, ela é inequivocamente uma mulher cis!. E é assim que ela se apresenta e como confirma sua família e representantes do governo do seu país, a Argelia, que além de ser um país altamente perigoso para pessoas LGBTQIA+, jamais enviaria uma mulher trans, sobretudo uma atleta, para lhe representar nas olimpíadas.

Sobre se ela é ou não uma pessoa intersexo, com cromossomos XY ou com testosterona mais alta do que o permitido pelas provas, não há nenhuma fonte verificável ou tida como válida. Há especulações e desinformação, e há também muita propaganda de cunho (i)moral e emocional (manipulação) para a mobilização política de massas, sobretudo a transfobia que enfrente um processo de weponization (BENEVIDES, 2024. Dossiê ANTRA 2024, pág 77) nos últimos anos.

E mesmo após ficar nítido que as atletas não seriam mulheres trans ou homens(sic), o caso também alimentou diversas teorias anticientíficas e comentários problemáticos decorrentes da invisibilidade de pessoas intersexo e a necessidade de discussões apropriadas sobre essa condição. E sem qualquer tipo de conhecimento sobre o tema, pessoas seguiram afirmando que Imane seria um homem(sic).

A respeito da taiwanesa Lin Yu-Ting, o porta-voz do gabinete de Taiwan disse que o gênero ou “sexo” de Lin não está em dúvida, que as autoridades esportivas forneceram relatórios médicos ao COI e o Estado a protege. Pan Men-an, secretário-geral do gabinete presidencial de Taiwan, disse no Facebook que apoiava Lin e que era errado que ela fosse “submetida a humilhações, insultos e intimidação verbal apenas por causa de sua aparência e de um veredito controverso no passado”.

No ano de 2021, eu já havia escrito um artigo sobre como a mídia deveria assumir um compromisso em acabar com a onda de notícias transfóbicas em torno de esportes, mas pouco avançamos como nos revelam os episódios recentes. E assim, novamente apelamos aos meios de comunicação e usuários das redes sociais para entenderem como operam as dinâmicas desses boatos e combater a desinformação verificando antes de divulgar.

No amanhecer do dia 3 de agosto fomos surpreendidas com um declaração de Angela Carini, atleta italiana que causou toda essa confusão ao se recusar a seguir com a luta e suas atitudes e declarações foram propulsores na afirmação de dúvidas — que como mostrado aqui já vinham sendo levantadas — sobre a oponente, onde volta atrás e “se desculpa” pelo ocorrido. Um pouco tarde frente a tudo que foi revelado neste episodio.

Após o episódio, a IBA (associação russa que em 2023 criou e disseminou informações não verificadas sobre Imane e Lin), afirmou que as duas atletas não foram submetidas a exame de testosterona ou a quais exames foram feitos, quais critérios foram usados, nem forneceram qualquer evidência. Eles simplesmente "decidiram e disseminaram a ideia de que Imane seria um homem ou teria cromossomos XY ou altos níveis de testosterona" e ainda tentaram convencer o COI do mesmo, sem sucesso. Até agora, tudo são especulações sobre o ocorrido nas provas de 2023. Vale lembrar que essas provas foram altamente questionadas por seguirem padrões eurocêntricos há muito tempo criticados por discriminarem mulheres com altos níveis de testosterona, como aquelas que sofrem de ovário policístico.

Repito: Imane Khelif, quanto Lin Yu-Ting não são mulheres trans, assim como mulheres trans não são um perigo ou uma ameaça. E mesmo que elas fossem trans, deveriam ser respeitadas e não vitimas de perseguições e negacionismo cientifico, ou de pseudociência que pretende impedir a presença trans no esporte.

É tão irônico que, sob o pretexto de estarem lutando para proteger as mulheres, jornais, celebridades e políticos tenham colocado em risco a segurança de duas mulheres e as tenham prejudicado tão gravemente. Na verdade, essa triste história nos chama atenção para quem está operando com ações tão perversas que colocam mulheres em risco.

O episódio envolvendo a boxeadora Imane mostrou a transfobia como ela é e toda perversidade que ela mobiliza a partir do ódio contra pessoas trans. Revelando a forma perigosa com que agentes antitrans operam para prejudicar e até eliminar vidas trans da esfera pública.

A transfobia pode ter destruído a carreira de uma mulher, além de toda violência que essa hipervisibilidade negativa gerou contra ela. Desejo, do fundo do meu coração, que Imane sobretudo esteja em segurança, consiga seguir com sua carreira e seja apoiada frente a exposição e ataques que sofreu nos último dia em escala global.

E desejo que isso nos ajude a organizar levantes e discussões para mostrar que pessoas trans estamos em constante perigo devido a esses tipos de pânicos morais propagados em escala global, e que assim como Imane e Lin precisamos ser protegidas. Esses episódios sinalizam que alimentar a transfobia não irá poupar mulheres cisgêneras, mas tem potencial de amplificar ainda mais os riscos que já enfrentamos no dia a dia.

As alianças entre a extrema-direita, feministas transfóbicas, “críticos de gênero”, fundamentalistas religiosos e grupos antitrans estão cada vez mais explícitas e são um risco à segurança das mulheres. A comunidade trans precisa ser protegida. Agora, mais do que nunca, aliados precisam sair do armário em defesa dos direitos e das vidas trans.

Basta de Transfobia!

Traduzido e adaptado a partir do artigo.

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Bruna G. Benevides
Bruna G. Benevides

Written by Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!

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