Mulheres trans também podem amamentar de forma segura e saudável

Bruna G. Benevides
8 min readAug 29, 2023

Sim, mulheres trans podem amamentar — e pesquisas mostram que é perfeitamente saudável e seguro tanto para a mãe quanto para o bebê.

A maioria das pessoas presume que apenas mulheres cisgêneras podem amamentar, mas uma combinação de pesquisas médicas e evidências clínicas provam que este não é o caso.

Na verdade, sabemos que as mulheres trans podem amamentar com sucesso os seus filhos — e que o leite que produzem pode, no mínimo, ser tão nutritivo como o produzido por pessoas que tem capacidade de gestar e dar à luz. Uma grande diferença entre a indução da lactação em mulheres cis e transexuais é a necessidade de bloqueio androgênico neste último grupo.

Em 2018, a revista médica Transgender Health publicou um estudo de caso que detalhava como uma mulher trans que vivia em Nova Iorque conseguiu induzir a lactação utilizando uma “estrutura básica” estabelecida por pesquisas anteriores.

Para amamentar, a dosagem de estradiol foi aumentada, assim como a dosagem de outro hormônio chamado progesterona. Ela também recebeu um galactagogue — medicamento desenvolvido para aumentar o suprimento de lactação em mulheres cis — para elevar seus níveis de prolactina.

Finalmente, ela foi orientada a usar uma "bomba tira leite" antes do parceiro dar à luz, a fim de ajudar a induzir a produção e aumento do seu nível de prolactina, hormônio que ajuda os seios a crescer e a produzir leite.

Este caso ganhou as manchetes em todo o mundo devido ao sucesso de seu tratamento. Três meses depois de iniciar o seu regime de medicação, ela conseguiu produzir 240 ml — aproximadamente 236 mm — de leite materno por dia.

Ela passou a amamentar seu bebê com seu leite exclusivamente por seis semanas. Seu pediatra relatou que “o crescimento, a alimentação e os hábitos intestinais da criança eram adequados ao desenvolvimento” durante esse período. E ficou nítido que os hormônios usados por ela não são transferidos para o bebê na amamentação.

Depois de seis semanas, ela começou a complementar a amamentação com fórmula, preocupada por não estar produzindo um volume de leite suficiente para as necessidades do bebê.

O leite materno de mulheres trans é comprovadamente saudável e nutritivo

Embora esse estudo de caso tenha demonstrado que muitas mulheres trans e outras pessoas que não dão à luz já sabiam — que são fisicamente capazes de amamentar — este não forneceu uma visão mais aprofundada da composição nutricional do leite da mulher trans.

No entanto, um artigo de Amy K Weimer, publicado na edição de maio de 2023 do Journal of Human Lactation , focou nisso.

Tal como o estudo de 2018, a investigação de Weimer apresentou um único estudo de caso, desta vez de uma mulher trans de 46 anos que queria descobrir se poderia “apoiar na amamentação do bebê durante os primeiros meses pós-parto”, ajudando na amamentação.

Nos meses que antecederam o nascimento do filho, ela foi submetida a um regime de tratamento semelhante ao detalhado no estudo anterior. Depois que o bebê nasceu, ela descobriu que era capaz de produzir cerca de 150 mm de leite materno por dia em cinco sessões de extração. Duas semanas após o nascimento, ela começou a amamentar uma ou duas vezes por dia, enquanto uma mamadeira de seu leite bombeado também era oferecida ocasionalmente.

Para seu artigo, Weimer também realizou uma análise de quatro amostras de leite materno produzido por ela, para entender melhor suas qualidades nutricionais. E descobriu que o leite “apresentava valores de proteína, gordura, lactose e conteúdo calórico iguais ou superiores aos do leite produzido por mulheres cis ou outras pessoas que podem gestar”.

A mulher trans acompanhada neste estudo também pôde atestar o impacto que a amamentação teve na sua relação com o filho. Ela afirma ter se sentido bem e considerou “emocionalmente gratificante” e “pragmático” poder ajudar nas responsabilidades de amamentação.

“Continuo me sentindo encorajada por ter conseguido fazer isso pelo bebê e ter uma conexão tão grande durante seus primeiros dias. É algo que tantas mulheres fazem e definitivamente é especial para mim”, disse a mãe.

Embora o estudo tenha concluído que o leite era nutricionalmente tão robusto como o de qualquer outra mulher ou pessoa que pode gestar, havia uma desvantagem aparente: a quantidade que ela produzia era inferior à que seria necessária “para sustentar o crescimento infantil de forma independente”.

O estudo observou que isto se deu “pelo menos observando que as sessões de amamentação completas eram menos frequentes, constantemente abaixo das frequências recomendadas de pelo menos seis a oito vezes por dia para estabelecer e manter uma produção robusta de leite”.

No caso deste casal, isso não importava já que ambos podiam amamentar, o que significava que juntes poderiam fornecer leite suficiente para o bebê.

Weimer escreveu que “um volume relativamente baixo de produção de leite também foi observado nos dois relatos de casos publicados anteriormente de indução da lactação em mulheres transexuais”. No entanto, pode haver “outros fatores contribuintes” por trás disso, disse ela.

Mulheres trans falaram sobre sua jornada de amamentação

Mais pesquisas são necessárias para compreender completamente as complexidades da amamentação ou da amamentação para pessoas trans e gênero diversas, sobretudo aquelas designadas homens ao nascer. No entanto, enquanto pessoas trans esperam que a ciência acompanhe o que já está a acontecer na prática, há muitas provas robustas que podem ajudar as mulheres trans a compreender melhor como podem amamentar os seus filhos.

Uma das maiores defensoras da amamentação de pessoas trans é a streamer do Twitch conhecida online como Nominal Naomi . Doutoranda e mãe de três filhos, ela fala frequentemente sobre sua própria experiência de amamentação nas redes sociais. E devido a isso tem recebido muitos ataques falando sobre a importância da "proteção infantil" em que deslegitima sua maternidade, e um fluxo interminável de abusos e ódio.

Em declarações à PinkNews, Naomi disse que ela e a noiva, que já tem filhos de um casamento anterior, decidiram que Naomi estaria em melhor posição para amamentar os filhos, pois ela tinha um horário mais flexível.

“Minha noiva não conseguia manter um suprimento de leite, tanto devido a algumas limitações em seu corpo, quanto por trabalhar até tarde da noite no hospital, então não havia como ela manter o suprimento estabelecido”, diz Naomi.

“E como eu tenho um horário muito flexível com meu trabalho, então consegui produzir essencialmente o leite que nosso filho estava tomando. E isso deu muito certo, por era algo que sempre quis fazer como mãe.”

Antes de começar sua jornada, Naomi se aprofundou na pesquisa médica. Depois de saber que poderia ser possível ela própria amamentar, ela contou com o acompanhamento de um médico para cuidados primários e um pediatra para descobrir um regime de medicação que lhe permitisse estabelecer e manter um fornecimento de leite adequado. Ela afirma que "ser capaz de nutrir seu filho foi uma experiência transformadora e muito importante na afirmação da sua maternidade".

“Isso me fez sentir próxima do meu bebê de uma forma maternal natural e foi uma ótima experiência poder sustentar meu bebê dessa maneira.”

Mulheres trans enfrentam hostilidade por amamentar seus filhos

Quando Naomi decidiu falar sobre sua própria experiência de amamentação, ela nunca poderia imaginar quantos abusos enfrentaria. Parte da reação a deixou com medo.

“Já tiveram pessoas ameaçando me atacar em público. Houve uma pessoa que tentou expor meus dados pessoais (doxing) e tentou registrar uma denúncia nos serviços de proteção à criança em um estado onde eu não morava. É assustador que as pessoas realmente tentem me machucar só porque quero sustentar meu bebê.”

Nem sempre foi fácil, mas Naomi quer que as pessoas trans saibam que a parentalidade pode fazer parte de suas vidas, se assim desejarem. É por isso que ela está determinada a continuar falando abertamente sobre suas experiências.

“Se você é uma mulher trans, você pode ser mãe. Você pode ter filhos. Você pode realmente ter uma família e esta vida — esse sonho é possível para você, e você pode até amamentar seus filhos”, diz ela.

“A única coisa que está impedindo você é o ódio e a violência de outras pessoas, e não quero deixar que isso me impeça de amar minha família da melhor maneira possível.”

Naomi não é a única pessoa trans que enfrentou reações adversas por sua decisão de amamentar. No Reino Unido, outra mulher trans, Mika Minio-Paluello enfrentou diversos ataques de ódio nas redes sociais depois de aparecer numa reportagem na Tv.

A deputada trabalhista Rosie Duffield escreveu no X — anteriormente conhecido como Twitter — que ela “não é uma ‘mãe’ lutadora [porque] os homens biológicos não poderiam carregar um bebé ou dar à luz”(sic).

Tal como Naomi, Mika foi posteriormente denunciada à Sociedade Nacional para a Prevenção da Crueldade contra Crianças, que concluiu que não havia risco de salvaguarda.

Todo apoio é importante, mas essa jornada é sua!

Cleo Madeleine é porta-voz da Gendered Intelligence, uma instituição de caridade com sede no Reino Unido que trabalha para aumentar a compreensão da diversidade de género e melhorar a qualidade de vida das pessoas trans. E teme que a sociedade esteja regredindo no que diz respeito às atitudes em relação aos pais LGBTQIA+, e a reação negativa à amamentação de mulheres trans faz parte disso.

“Fundamentalmente, todos devem estar envolvidos na criação e cuidados dos seus filhos, independentemente da identidade de gênero. Estamos em 2023, ensinamos com muita alegria aos nossos filhos que as famílias existem em diversos formatos, e isso não é apenas para falar sobre parentallidades LGBTQIA+, mas também para falar sobre pais e mães solteires, sobre família construída além dos lacós afetivos, sobre adoção e outras formas de se constituir enquanto pais e mães.

“É muito importante compreender que nem toda família se parece com uma mulher cis que amamenta e cuida da criança, e com um homem cis que não está relacionado em tudo isso.”

Madeleine salienta que não faz muito tempo que a Secção 28 entrou em vigor em Inglaterra, segundo a qual as pessoas LGBTQIA+ foram eliminadas das escolas.

“Odeio pensar que estamos voltando para esse tipo de época”, diz ela. “Deveríamos aceitar o fato de que temos uma grande diversidade de maneiras de criar os filhos e educá-los neste mundo.”

Os pais trans devem ignorar os julgamentos de outras pessoas

Marianne Oakes, uma terapeuta trans que dirige seu próprio consultório , além de seu trabalho com GenderGP , diz que a reação antitrans está afetando as pessoas trans que podem estar pensando em começar uma família. O conselho dela é simples: pense no que é certo para você e sua família e não tenha medo de excluir o resto do mundo.

“A primeira coisa que eu diria a qualquer pessoa trans é que você não está fazendo nada diferente do que qualquer outra pessoa faria, que sua necessidade de dar sustento ao seu bebê recém-nascido é igual [a] e [tão] válida [como] qualquer pessoa.”, diz Oakes.

“Se existe uma maneira de você conseguir alimentar com o melhor leite que seu bebê pode obter, que seja igual ao de qualquer outra pessoa, então não sinta que precisa se desculpar. Você está sendo o melhor que pode ser — e nunca se esqueça disso.

“Se você quiser ser mais aberto e educar, basta estar preparado. Certifique-se de ter preparado sua narrativa. Sempre pense no que você quer dizer sobre isso, sem levar em conta os julgamentos de outras pessoas. Não se desculpe. Na verdade, trata-se de se preparar psicologicamente para essa jornada.”

Referências:

  1. Induced Lactation in a Transgender Woman — Disponível em: https://www.liebertpub.com/doi/10.1089/trgh.2017.0044
  2. Lactation Induction in a Transgender Woman: Macronutrient Analysis and Patient Perspectives — Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/08903344231170559

Traduzido por Bruna Benevides, com infomações de PinkNews.

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Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!