Nova epidemia, velhas mazelas.

Bruna G. Benevides
6 min readApr 6, 2020

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Uma travesti arrasta um colchão em frente aos barracos da cracolândia.
Uma travesti arrasta um colchão em frente aos barracos da cracolândia. Foto: BOSCO MARTÍN/El país

Diante da epidemia do coronavírus e de toda a dificuldade que temos tido para organizar estratégias capazes de promover um enfrentamento eficaz, que vem sendo prejudicadas pela lambança que vem sendo feita pelo presidente, vemos escancarada a política de deixar viver ou morrer, que já vinha sendo colocada em prática, mas que agora se manifesta sem filtro e sem limites.

Seja pelas ações do governo ou ausência delas, essa política afeta diretamente pessoas empobrecidas, negras, idosos, PCD, mulheres, pessoas vivendo com HIV, LGBTI+, indígenas e outros povos tradicionais, pessoas que não têm sua humanidade reconhecida, cujas existências sejam vistas como indesejáveis, não devendo ter acesso a cuidados ou a direitos. Muitas não são vistas como gente, e as travestis profissionais do sexo , em sua maioria negras e semianalfabetas que desempenham sua função na rua, enfrentam diversos estigmas no país que mais assassina pessoas trans do mundo.

A precarização de determinada parcela da população faz parte de um plano global genocida para exterminar vidas que enfrentam processos históricos de vulnerabilização, a fim de cumprir o plano de defesa da propriedade privada de uma casta superior pautada na branquitude empresarial, que se diz cristã e é neoliberal, e de garantir a manutenção dos privilégios egoístas de uma elite racista e conservadora, cis-hétero-centrada.

Quem são as pessoas que acessam as políticas de assistência social e que estão cadastradas no Cadastro Único, por exemplo? Quem são as pessoas que utilizam SUS normalmente? 80% delas são negras, de acordo com a última pesquisa. Aliás, quem são essas pessoas, senão trabalhadores desempregados ou precarizados, que estão em maior risco de morte pela infecção e morte pela covid, pelas condições precárias em que são obrigadas a viver?

Todos os problemas que temos enfrentado até aqui, seja no sistema de saúde ou de assistência social, mas também problemas econômicos, já vinham sendo denunciados e vivenciados pela maior parte dos brasileiros, e passavam por um processo de acirramento antes mesmo de ser declarada a pandemia mundial. É importante lembrar disso para que discursos falaciosos não tentem manipular a opinião pública a fim de imputar culpa à pandemia sobre o que já estava posto.

Enquanto o capitalismo incentiva e tenta manter o modelo de defesa da propriedade privada e o individualismo meritocrático, vemos os Estados Unidos sucumbirem à pandemia. O momento exige que façamos o resgate urgente de um senso de coletividade e de defesa das políticas públicas conquistadas pelos movimentos sociais, afim de enfrentar a política neoliberal de estado mínimo, que agora agoniza diante da força do coronavírus.

O desmonte do SUS, que iniciou com o golpe de 2016, ganha um gás com a PEC 55, que congela os investimentos na saúde e em outras áreas por 20 anos — e que precisa urgentemente ser revogada. As políticas de assistência social agonizam com cortes, e o SUS precisa ser defendido, mesmo que opere com muitas limitações. Afinal, vemos uma potência gigantesca de seus trabalhadores e defensores para a garantia de um serviço público que dê conta das necessidades da população brasileira. O que a reforma trabalhista trouxe de bom para o Brasil, senão o aumento do trabalho informal? O que a reforma tributária acrescentou, de fato, à economia?

Nesse sentido, vemos escancaradas as mazelas e lutas que já vinham sendo travadas muito antes da COVID-19 e que fazem parte da estrutura de desigualdade do Brasil. Nenhuma dessas pautas ou as dificuldades que vemos emergirem nesse cenário atual são recentes. Todas as lutas que vimos até agora eram velhas conhecidas da maior parte da população, mas só agora estão sendo expostas como as maiores feridas causadas à humanidade pelo capitalismo neoliberal.

É nossa responsabilidade cobrar do Estado que ele dê conta da sua população, sem negociar nossos direitos ou abrir mão de ajudar aquelas pessoas que não podem parar de trabalhar, ou migrar para home office. É urgente olhar para as pessoas em situação de rua ou em uso abusivo de álcool e drogas, para os asilos, para 90% da população de travestis e transexuais que utilizam a prostituição como fonte primária de renda. Da mesma forma, é necessário defender os direitos das pessoas que se encontram no sistema prisional, onde a tortura é uma regra que permitimos que ela se estabeleça;lutar pela manutenção das terras indígenas, dos trabalhadores do campo e movimento sem terra;estar junto dos movimentos estudantis e aqueles por moradia; fortalecer a luta antimanicomial. É nossa responsabilidade ouvir o que as pessoas estão precisando nesse momento, inclusive para entender que suas necessidades vêm de outros tempos e os processos complexos de negação de seus direitos.

E onde você estava diante disso tudo? Antes de chegarmos até aqui?

O Papa rezando sozinho na praça São Pedro não irá nos salvar. Agora, de fato, não serão as preces, rezas, ebós ou orações que irão nos salvar. Aliás, em todo o mundo, grupos de fundamentalistas religiosos têm sido (cor)responsáveis pelo avanço da propagação do coronavírus e a infecção de milhares de pessoas — há pesquisas que demonstram isso.

Todas as estratégias anteriores têm falhado. O poderio militar bélico, a indústria de armamento, a reforma da previdência ou trabalhista, os planos de saúde caríssimos, o privilégio de acesso a saúde de qualidade e a tecnologia de ponta têm sido insuficientes para nos livrar do que temos visto.

Vemos que a doença que mata a vizinha pobre ou sua mãe que mora na favela é a mesma que está matando milionários pelo mundo. Aliás, a COVID-19 teve sua disseminação a partir de pessoas ricas. E é aí que ele demonstra a sua forma de nos ver: como iguais, sem distinguir hétero de gays, cis de trans, altos de baixos, crentes de ateus, políticos de desempregados, letrados de analfabetos.

Para muito além do desespero e caos que bombardeiam nossa mente, o Brasil que se apresenta agora é o Brasil dos profissionais de saúde exaustos que se revezam incansavelmente para salvar pessoas que nem conhecem. É o Brasil de empresários assumindo prejuízos para não demitir seus funcionários. É o Brasil de pessoas parando suas atividades para garantir o bem-estar de outros. É o Brasil dos entregadores, garis, caminhoneiros e caixas de supermercados. É o Brasil de pessoas que doam o pouco que tem para que quem tem menos ainda possa ter algo. É o país do amor ao próximo e de gente que se preocupa com gente, de forma real e para além de qualquer discurso vazio e hipócrita. (Pedro Aihara)

E estamos sendo obrigados, a partir do pavor e do medo, a aceitar que somos todos iguais. Isso, porque temos medo do mesmo inimigo comum que nos assola a todos, que nos isola para fazer pensar em solidariedade e senso de coletividade — ou, em outras palavras: consciência de classe. Se, antes, a segregação garantia a proteção de poucos, hoje, é exatamente o oposto: para que eu seja protegida, milhares precisam também ser protegidos na mesma média. Mas como?

Fica nítido nesse cenário que o coronavírus é mais que uma pandemia. Ele tem sido o responsável pelo colapso do sistema capitalista e das próprias relações que nós temos com o mundo à nossa volta. Ele mostra que o Estado que não se preocupa com o bem-estar social de sua população em detrimento da política econômica está fadado ao fracasso. E nos cobra, especialmente daqueles privilegiados, que olhemos para além da nossa capacidade de enxergar o óbvio, que sempre esteve à nossa frente, mas que ignorávamos preocupados com nossas próprias ilusões capitalistas.

Quem de fato sobreviverá à pandemia e poderá dizer que se tornou uma pessoa melhor ou, pelo menos, diferente diante das velhas mazelas da humildade? Talvez este seja esse o maior desafio que a humanidade deverá enfrentar nos tempos pós coronavírus. E é exatamente por isso que devemos pensar sobre isso hoje, agora.

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Bruna G. Benevides
Bruna G. Benevides

Written by Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!

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