O Cachorro e a Travesti…

Bruna G. Benevides
5 min readNov 27, 2019

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Estava no ponto de Ônibus mais cedo e vi um cachorrinho chorando de dor, embaixo de uma passarela. Imaginei que teria sido atropelado por se tratar de uma rodovia.

Rapidamente, outras pessoas foram chegando e tentando ver formas de ajudar. Ligaram para bombeiros, veterinária e outros órgãos que pudessem prestar algum apoio. Eram 7/8 pessoas empenhadas e preocupadas com a vida do animalzinho. Fiquei triste por não poder fazer nada.

Já no ônibus…

Fiquei refletindo e tentei imaginar a situação sob como seria esta preocupação/organização para ajudar, caso se tratasse de uma travesti, machucada, em situação de rua. E percebi que em relação as pessoas trans, o tratamento destinado a nós, é proporcional a noção que as pessoas tem sobre nossa humanidade.

Lembrei de Dandara (CE/2017). Que ao invés de terem 7/8 pessoas ajudando, haviam 10 pessoas lhe agredindo, violentando publicamente sem nenhum pudor. Pessoas que violaram seu corpo. Tiraram sua vida com extrema violência e ódio. Não teve ajuda e seu vídeo foi compartilhado milhares de vezes.

Lembrei de Taísa, que foi agredida em Santa Cruz no Rio de janeiro, por 4 homens, as 8h da manhã, tendo sido arrancada de dentro de uma VAN e NINGUÉM FEZ NADA. Somente sua irmã tentou ajudá-la e também foi agredida. Não teve ajuda e seu vídeo foi compartilhado milhares de vezes.

Lembrei de outra Travesti que — foi tratada no masculino e teve o nome de registro exposto sem menção do nome social, foi agredida a pauladas por 5 homens em Tocantins (2016), em plena via pública. Foi retirada de dentro da sua casa arrastada pelos cabelos. Haviam pelo menos 10 pessoas assistindo. Não teve ajuda e seu vídeo foi compartilhado milhares de vezes.

Eu poderia fazer uma lista gigantesca destes casos, e outros tantos ignorados.

E me dei conta que comparando a vida de uma travesti e a vida de um cachorro — de rua, ser um cachorro garante ao animal uma vida melhor e mais digna do que a de muitas de nós, como podem ver a seguir:

1. Em relação ao respeito a identidade de gênero:

Cachorro:
Já notaram que quando nos referimos a um animalzinho e por acaso erramos o ‘’gênero’’ do animal, rapidamente somos repreendidos pelos donos, pedimos desculpas, corrigimos imediatamente e nunca mais cometemos este absurdo. Não é mesmo?

Travestis:
Que mesmo com documentação retificada, nome social e sua própria expressão de gênero femininas, tem seu gênero questionado, desrespeitado diariamente e deslegitimado no tratamento interpessoal, sendo inclusive pedido a nós que tenhamos paciência, pois as pessoas demoram a acostumar (lembram do cachorrinho?).

Quem não tem nome retificado enfrenta diversas humilhações no dia a dia.

2. Em relação ao direito a nome:

Cachorro:
Se você errar o nome do PET, imediamente é chamada atenção pelos ‘’pais e mães de bicho’’ que mostram o perfil do instagram para provar que o animalzinho existe e seu nome consta lá. Inclusive em Niterói, donos de cachorros podem registrar o nome dos bichos em cartórios com seus sobrenomes, sem grandes burocracias.

Pessoas Trans:
Mesmo com a decisão do STF e a politica de nome social, há vários relatos diários de pessoas que tem seu nome desrespeitado, sendo obrigadas e submetidas ao uso do nome de registro em determinados espaços e com imensa dificuldade de realizar a retificação registral no estado do Rio de Janeiro, visto que ele tem colocado grande parte dos casos com pendencia (pendencia, na resolução do CNJ refere-se a casos de dúvida ou suspeita de fraude).

Diante deste cenário, fiquei pensado no quanto nossas vidas são abjetas e ainda não tem o devido valor. Do quanto nossa existência é vista como um fardo por termos que lutar para ensinar as pessoas a lidarem e se acostumarem com nossa presença. A conviverem com nossos corpos. E o quanto isso tem nos custado!

Especialmente em relação a nossa saúde mental que é diariamente bombardeada com a negação de nossa identidade, dos espaços de sociabilidade, violências simbólicas e psicológicas, baseadas em senso comum e no espantalho da ideologia de gênero. Em tabus e mitos para nos manter em um local inferior, subalterno.

Quem colocou o cachorro em situação de rua, se não a mesma sociedade que nos empurra para a marginalização? Em contrapartida, não vemos o mesmo empenho que há em relação a cuidados com cachorros, quando se trata de nossa população.

É muito triste constatar que a violência, seja ela física, psicológica, simbólica, patrimonial ou qualquer outra, está naturalizada contra nós. Ao ponto em que temos menos dignidade, menor reconhecimento e cuidados do que cachorros. Que recebem carinho, comem ração de boa qualidade, tratamento digno e respeitoso, acesso a saúde, enquanto nós temos nossas vida ceifadas e corações arrancados por ser quem somos.

Como disse Yuna Vitória: “Não se pensa a norma que rejeita os nossos corpos, mas os corpos que rejeitam a norma” e que por isto, enfrentariamos tantos desafios. Invertendo a lógica perversa que é posta sob nossa existência.

Como se o ideal fosse abrir mão de quem somos e seguir a norma cisnormativa, para que nossa vida melhore. Ignorando todos os processos violentos que a própria cisnormatividade nos impõe.

E as justificativas são sempre as mais rasteiras possíveis. Jogando a culpa sobre nossas costas ou do quanto a responsabilidade de mudar esta realidade depende exclusivamente de nós.

Já pensaram em como seria a vida de milhares de Travestis, incluindo aquelas que hoje estão abaixo da linha da pobreza, se fossem acolhidas ou tivessem um olhar humano dedicado a nós como acontece com nossos queridos animaizinhos?

Entre um cachorro de rua e uma travesti, quem você levaria para casa? Porque?

Esta não é uma crítica as pessoas que cuidam de animais. A crítica é sobre quem e quais corpos a Cisgeneridade escolhe como elegível para o cuidado. Se você não entendeu isso, leia novamente.

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Bruna G. Benevides
Bruna G. Benevides

Written by Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!

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