Pseudoteorias de ‘disforia de gênero de início rápido’ e ‘contágio social’ são (novamente) refutadas por especialistas

Bruna G. Benevides
6 min readSep 29, 2023

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Em mais um estudo publicado, especialistas médicos (novamente) rejeitaram a ideia de que em algum momento da vida de alguém que se identifica como sendo uma pessoa trans poderia ter sido em decorrência de um suposto “contágio social” depois que um pesudo-estudo anti-LGBTQ+ pretendia afirmar que isso teria alguma ligação com a realidade.

Sessenta e duas instituições médicas nos EUA, incluindo a Associação Americana de Psicologia (APA), denunciaram anteriormente a “Disforia de Género de Início Rápido” como um diagnóstico clínico sem validade.

O estudo, intitulado “Disforia de Gênero de Início Rápido — Relatórios de Pais sobre 1.655 Casos Possíveis” e publicado em março de 2023, foi revisado e removida sua publicação após críticas de seu editor, que disse que ele violava as políticas editoriais em torno do consentimento. As preocupações também foram levantadas pelos leitores, que criticaram a metodologia descrita no artigo, que a editora disse estar investigando.

A pesquisa examinou a suposta “disforia de gênero de início rápido” (DGIR ou ROGD em inglês), uma condição proposta em forma de um diagnóstico que atribui o sofrimento de gênero dos adolescentes à exposição a pessoas trans através de amigos ou redes sociais (sic). A equivocada afirmação da existência de tal síndrome tem sido objeto de intenso debate nos últimos anos e alimentou argumentos contra as reformas dos direitos dos trans, apesar de ter sido amplamente criticada por especialistas médicos .

O próprio autor do "estudo", Michael Bailey, descreveu a DGIR/ROGD como uma “teoria controversa” de “crenças, valores e preocupações culturais comuns que fazem com que alguns adolescentes atribuam seus problemas sociais, sentimentos e problemas de saúde mental à disforia de gênero”. Ele também afirmou que “os jovens com DGIR/ROGD acreditariam falsamente que são transgêneros”(sic). O estudo foi revisado e retirado de sua publicação, rejeitado pelo conselho de ética.

Em uma entrevista à Scientific American , diversos especialistas da área concordaram que a ideia de um “contágio social” entre adolescentes trans não são “apoiadas pela ciência”.

A presidente da Associação Profissional Mundial para Saúde Trans, Marci Bowers, disse à publicação que o DGIR/ROGD era simplesmente um “conceito baseado no medo que não é apoiado por estudos”.

Bowers afirmou que o DGIR/ROGD vem sendo usado como um espantalho para "criar pânico", “assustar as pessoas e os legisladores” para que votassem em favor de legislações apoiadas pelo lobby de grupos anti-trans nos EUA. “É uma legislação cruel, muito cruel”, afirmou em entrevista a um portal de notícias.

Aqui no Brasil, em 2019, a ANTRA publicou uma nota sobre o mito da disforia de gênero de inicio rápido que embasa teorias conspiracionistas sobre o espantalho chamado por grupos antitrans como "epidemia trans"(sic). E que vinha sendo defendida pelo psiquiatra do AMTIGOS, Alexandre Sadeeh.

‘Descoberta parental de início rápido’

Acredita-se que o termo — Disforia de inicio rápido ou por contágio social — tenha se originado de um artigo de 2018 da médica e pesquisadora Lisa Littman, que conduziu uma pesquisa com pais de crianças transgêneras — que o artigo alega ter sido adquirido de sites e fóruns anti-trans — para descrever a “repentina ou rápida reação” de uma criança ao início da disforia de gênero.

Após se refutada, Littman emitiu uma correção afirmando que a disforia de gênero de início rápido não é um diagnóstico legítimo depois de ter sua teoria absurda usada por vários grupos anti-trans para justificar legislação discriminatória nos EUA e ao redor do mundo.

“Não estamos falando da existência de uma disforia de gênero de início rápido, mas de uma descoberta parental de início rápido”, disse Diane Ehrensaft, diretora de saúde mental do Centro de Gênero Infantil e Adolescente da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF).

“Para falar sobre o que as crianças pensam, sentem e fazem, especialmente à medida que crescem o suficiente para terem as suas próprias mentes e narrativas, é necessário entrevistá-las.

Um estudo publicado na revista Pediatrics em 2022 constatou que o “contágio social” não é apoiado por dados do mundo real.

Ehrensaft também observou que, para muitas crianças trans, os pais podem muitas vezes ser as últimas pessoas a quem contam sobre a sua disforia, já que assumir para a família pode ser uma experiencia assustadora devido a falta de informações ou medo de rejeição. Além disso, diante das constantes movimentações no campo político contra cuidados de afirmação de gênero e negativas de acesso a crianças e jovens trans, estes se sentem inseguros em abrir para seus pais aquilo que já perceberam bastante tempo antes de se sentirem seguros para externar isso.

E como resultado disso, a disforia de género nas crianças pode parecer parecer que surgiu “repentinamente” do ponto de vista dos pais.

“De certa forma, [as crianças] estão muito mais avançadas do que eu, como alguém na casa dos 70 anos, sobre como vivem e compreendem o género”, continuou Ehrensaft.

“Portanto, se quisermos realmente compreender o género, recorreremos aos especialistas — e estes seriam portanto os próprios jovens.”

E como as pessoas LGBTQ+ têm visto repetidamente, o aumento da visibilidade muitas vezes leva ao aumento dos ataques por parte daqueles que não entendem a comunidade e desejam nos manter invisíveis.

A teoria do “contágio social” tem alimentado teorias prejudiciais que vêem os grupos estigmatizados como contaminados e capazes de corromper ou converter os mais jovens (SIC). E isso cheira à retórica racistas e capacitistas usada ao longo da história para atacar muitos grupos marginalizados diferentes, incluindo membros da comunidade LGBTQ+ , pessoas negras e pessoas com deficiência.

Pessoas trans não são uma novidade identitária contemporânea ou pós-moderna. A história mostra que pessoas trans existiram em diferentes culturas ao longo da existência humana .

O que tem aumentado nas últimas décadas tem sido a visibilidade trans. E este é um sinal legítimo de que a sociedade está se tornando cada vez mais receptiva a nossa existência à medida que um número crescente de pessoas trans sentem cada vez mais seguras e empoderadas para viver abertamente sua identidade e receber apoio, incluindo cuidados de afirmação de género.

Esse tipo de manipulação da realidade tem a mesma raiz: o ódio transfóbico que pretende impedir pessoas trans de serem quem são. E toda essa campanha violenta tem trazido impactos violentos sobre a juventude trans.

Precisamos organizar um levante cada vez mais potente e qualificado para defender os direitos de crianças e jovens trans. E nesse sentido a ANTRA lançou uma Nota Técnica sobre cuidados em saúde para crianças trans, vale a leitura.

“A despatologização das identidades trans e travestis se refere a um movimento global pela retirada da transexualidade do rol de doenças mentais”, diz o texto. “Entendemos que não há exame clínico que seja capaz de atestar a ocorrência de um ‘desvio de gênero’, pois masculinidades e feminilidades são produções históricas e psicossociológicas”.

Os autores ainda ressaltam que pessoas trans não devem ter seu reconhecimento legal condicionado à avaliação médica, uma vez que “avaliações diagnósticas perpetuam práticas abusivas e de vigilância que são justificadas por tratamentos supostamente neutros, mas que podem levar ao adoecimento”.

REFERÊNCIAS

1. RETRACTED ARTICLE: Rapid Onset Gender Dysphoria: Parent Reports on 1655 Possible Cases. https://link.springer.com/article/10.1007/s10508-023-02576-9

2. Nota da ANTRA sobre Disforia de início rápido. https://antrabrasil.org/2019/04/24/o-mito-da-disforia-de-inicio-rapido-e-de-contagio-social-mencionada-por-alexandre-saadeh/

3. Sex Assigned at Birth Ratio Among Transgender and Gender Diverse Adolescents in the United States. https://publications.aap.org/pediatrics/article/150/3/e2022056567/188709/Sex-Assigned-at-Birth-Ratio-Among-Transgender-and?autologincheck=redirected

4. Coalition for the Advancement & Application of Psychological Science — CAAPS — Position Statement on Rapid Onset Gender Dysphoria (ROGD). https://www.caaps.co/rogd-statement

5. Evidence Undermines ‘Rapid Onset Gender Dysphoria’ Claims. https://www.scientificamerican.com/article/evidence-undermines-rapid-onset-gender-dysphoria-claims/

6. How Junk Science Is Being Used against Trans Kids. https://www.scientificamerican.com/video/how-junk-science-is-being-used-against-trans-kids2/

7. Correction: Parent reports of adolescents and young adults perceived to show signs of a rapid onset of gender dysphoria. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6424391/

8. Nota técnica da ANTRA sobre cuidados em saúde para crianças trans. https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2023/06/26/nota-tecnica-assinada-por-medicos-desmente-teorias-anticientificas-e-transfobicas-sobre-criancas-trans

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Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!