Quais vidas negras importam?

Bruna G. Benevides
10 min readJun 17, 2020

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Arte de Ethan X. Parker

Dia 27 de maio, dois dias depois do assassinato de George Floyd, Tony McDade, homem trans negro de 38 anos foi brutalmente assassinado[1] por policiais em Tallahassee, Florida. Se tornando a 12ª pessoa trans assassinada este ano nos EUA[2]. Não houve comoção nacional, nem menções de sua morte para além da comunidade LGBTI+.

Poucos dias depois, em 1º de junho, Iyanna Dior, uma mulher trans negra foi brutalmente agredida e vítima de xingamentos transfóbicos por muitas pessoas durante a manifestação em Minnesota (onde George Floyd foi assassinado). Seus agressores eram cerca de 20/30 pessoas negras como podemos ver no vídeo que circula na internet e na tag[3] com seu nome. Ativistas também chamaram a atenção para o assassinato de Nina Pop, 28 anos, que foi encontrada morta em seu apartamento no Missouri no início de maio.

“Acho que é um momento difícil para ser uma mulher trans, porque estamos tentando combater o racismo na comunidade LGBTI+ e também estamos tentando combater a transfobia na comunidade negra. Só porque alguém é identificado como trans, isso não tira nosso lugar de preto. Nós somos tão negros quanto vocês.” (Ashlee Preston em entrevista à NBC)

E aqui surge o ponto principal que pretendo refleti: ser negra/o e protestar contra o racismo seria possível apenas para pessoas cis? Qual a bandeira que une as pessoas cis e exclui pessoas trans, se não o cissexismo[4]?

Seria muito importante ver o movimento negro de manifestar aberta e publicamente contra a Transfobia que tira a vida de pessoas negras em 80% dos casos de assassinatos contra pessoas trans no Brasil, de acordo com dados da ANTRA[5]. E incluir a discussão anti transfobia nos espaços e debates pretos, na luta antirracista e antifascista.

Em ‘As mulheres negras na construção de uma nova utopia’, Angela Davis destaca a importância de refletir sobre de que maneira as opressões se combinam e entrecruzam: As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas.

Onde estão as mulheres no momento em que aqueles homens saem às ruas para protestar ? Em casa fazendo o serviço doméstico ou com medo de terem seus corpos violados por serem mais vulneráveis? Quem garante a segurança das mulheres nos espaços de luta? É seguro para uma mulher estar nessas manifestações ? Quantas mulheres foram agredidas por quem estava do mesmo lado de sua luta?

Mulheres trans não estão seguras em nenhum espaço. Muitas tem medo de ir as manifestações porque não são espaços seguros. Seja por parte dos opressores ou ainda por aqueles que estariam defendendo a mesma bandeira que a nossa, porém em locais distintos, distantes. Ou por acaso o movimento negro não cabe as LGBTI+? Uma travesti negra não teria o direito de estar nas fileiras da luta antirracista ou no movimento de mulheres negras?

De quais pessoas negras estamos falando e ouvindo? A gente não pode limitar a discussão sobre racismo unicamente sob a ótica da cisgeneridade. Precisamos olhar com muita atenção para as pessoas trans e travestis negras, em vulnerabilidade social, sendo expulsas de suas casas, da escola e com extrema dificuldade de ser legitima enquanto corpo político. Corpo que fala e produz. É muito importante lembrar e incluir na luta antirracista, pessoas que ainda precisam lutar por um nome, por sua vida e que está na base desse cistema. Falar em genocídio da população negra, é falar sobre o genocídio da população trans, negra. (Alice Guel)

Nem nos espaços progressistas estamos seguras. Basta ver quantas travestis estão em cargos de diretorias ou ocupam setoriais partidários tendo seus nomes pensados para candidaturas majoritárias nos partidos. Temos sido tokenizadas pela esquerda e ocupamos poucos espaços, sempre limitadas a tutela da cisgeneridade. Dependentes de pessoas cis para controlar nossa atuação ou dizer quais caminhos tomar, sob o risco de demissão para aquelas que ocupam cargos indicados e vivem sob constante assédio moral para cumprir uma agenda ciscentrada.

Não cabemos no movimento feminista?

Em 2019, durante a organização do 8M no RJ, muitas de nós fomos perseguidas por feministas radicais que aquele ano conseguiram impedir nossa participação e falas no ato do dia Internacional da Mulher na Cinelância/RJ. Aliás, aqui na necropólis brasilis, feministas radicais co-assinam projetos de lei com deputados fascistas que se colocam frente a agenda anti trans do país e tem se aliado a movimentos conservadores nos EUA e UK para tirar direitos das pessoas trans.

E neste mesmo momento onde a luta antirracista se intensifica e reafirma sua posição na luta contra o fascismo, uma das maiores escritoras — e a autora mais rica do mundo, que impactou uma geração inteira durante anos com o universo de Harry Potter, tem se aliado ao racismo colonial de feministas cissexistas e o impacto dessa movimentação é a violência, a perseguição, e o assassinato. E seremos nós, mulheres trans negras que teremos nossos corpos atingidos prioritariamente e cada vez com mais ódio.

É sempre constrangedor ter de lembrar as nossas companheiras cisgêneras que em qualquer discussão sobre gênero e/ou direitos das mulheres, devem ser incluídas mulheres trans. E este constrangimento surge muitas vezes porque sequer somos lidas como mulheres e que, portanto, não podemos ocupar o mesmo lugar das demais mulheres. As políticas para mulheres estão dialogando com às necessidades das mulheres trans? As delegacias das mulheres atendem e acolhem nossa população? Os centros de acolhimento para vítimas de violência recebem nossos corpos? O disque 180 atende o chamado de uma travesti?

A polícia nunca nos protegerá.

Existe uma herança muito forte da ditadura nas forças de segurança sobre nossos corpos[6]. E aqui lembro de Verônica Bolina, que teve seu caso de saúde mental transformado em caso de polícia. E que mesmo tendo sido brutalmente espancada por policiais e tendo suas fotos expostas para o mundo com cabelos raspados e seios à mostra, foi coagida a mudar seu relato — o que veio a confirmar tempos depois reafirmando a violência impetrada contra si. Quem lembra dela? Como ela está? Eu sei, e vocês, sabem? A sua vida não importa?

Faz muito tempo que tento discutir isso e denunciar que largaram nossas mãos nos deixando por nossa própria conta e só lembram de nós para falar sobre mortes e violência. Não somos lembradas nas ações antirracistas.

Seremos destinadas unicamente a guetização do movimento LGGGGGBTI+, que apesar de algumas mudanças segue embranquecido e machista?

Ninguém notou o ressurgimento de redes e instituições exclusivamente gays após o avanço do movimento trans na conquista de direitos e na visibilidade que temos alcançado? Ninguém percebeu do que isso se trata?

Há poucos dias, recebi no privado a denúncia de uma mulher trans negra foi espancada a pauladas na baixa do sapateiro, em salvador. E ninguém fez nada. Limitaram-se a filmar e divulgar nas redes sociais. Em agosto de 2017, Thadeu nascimento, homem trans negro, foi executado a tiros depois de ter sido espancado e há suspeitas de que havia sido estuprado antes do crime. Não teve seu nome social respeitado pela polícia e dois dos principais suspeitos eram negros.

No último ano, 2019, foram 124 pessoas trans assassinadas. 97,5% eram mulheres e a maioria eram negras. Onde estão os memoriais? As homenagens? As faixas? Esqueceram Matheusa, Demétrio, Luanny Kelly, e Layla, de 15 anos — a mais jovem trans assassinada nestes 4 anos em que realizo o mapeamento.

Dia 20 de novembro é o Dia Internacional da Memória Trans (TDoR)[7]. Dia em que lembramos as pessoas trans assassinadas. Não por acaso, é o dia em que comemoramos nacionalmente o Dia da Consciência Negra. E mesmo tendo sido maioria de pessoas trans assassinadas negras, sempre sofremos com a acusação de tentar apagar(sic) a luta do movimento negro pela data ser no mesmo dia.

Como se fossemos movimentos opostos ou que o orgulho não fizesse parte de nossa caminhada para o reconhecimento de nossa cidadania ou ainda pelo direito de lembrar de nossos mortos. Como se as nossas lutas e dores não se somassem. Ignorando que (as lutas) divididas geram mais corpos deixados a sua própria sorte, preteridas e totalmente vulneráveis a violência. Restando para nós tentar juntar os cacos de história e narrar essa violência quem vem de todos os lados.

E são muitas perguntas sem resposta. Porque uma parte do movimento negro não quer estar associado ao movimento de pessoas trans? Por que aceitamos e convivemos com feministas trans excludentes nos espaços progressistas, que ajudam a amolar a faca contra nós? Porque silenciamos frente a expulsão de pessoas trans dos partidos? Por que é aceitável ter uma ideia de que raça precede o (cis)gênero, se é o cissexismo (defesa da cisgeneridade) que tem tirado nossas vidas e anulado nossas existências? A quem interessa afirmar esta hierarquia para entender que estes (e outros marcadores) não são lidos isoladamente?

A estimativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos.

E esta é uma média que vai diminuindo ao passo em que os marcadores que constituem a pessoa se mostram presentes nas cicatrizes que ela carrega em seu corpo. Ser negra, mulher trans ou travesti, periférica ou favelada, faz esta média cair muito. Não somos apenas negras, somos mulheres, somos trans, prostitutas (90% da população trans), e estes marcadores nos expõem ao risco aumentado de violência, principalmente ao assassinato.

É impossível segmentar e dissociar as marcas que trazemos em nossos corpos. Nossas dores se somam ao silencio e a omissão, e eclodem na violência que nos mata a cada dia, algumas vezes simbolicamente, e na a maioria delas o assassinato vem como um ultimato. Não é possível enfrentar o racismo que a população negra sofre, ignorando o mesmo processo inferiorizante imposto pelo gênero, pela transfobia e pelo cissexismo.

A luta antirracista inclui o enfrentamento ao cissexismo? A vida de quais pessoas merece respeito ou estar no centro da narrativa? Desculpem. Estou cansada de ver a cisgeneridade nos silenciando e ignorando nossa luta.

Erica Malunguinho, a primeira deputada trans negra deste País foi ameaçada durante uma seção no parlamento da ALESP, por um homem gay, negro, que também é deputado, por ser uma mulher trans. Ela afirma que a violência e a transfobia são um vício branco, e precisamos tirar a violência dos nossos espaços. Tomar ações contra a violência transfóbica.

É por isso, que defendo a urgência de enegrecer o movimento trans e transgenerizar o movimento negro, fazer das questões raciais e de gênero uma demanda importante dentro das periferias, politizar cada vez mais nossas juventudes. (Letícia Carolina para o portal Nohs Somos[8])

É muito difícil pensar que, nem mesmo no movimento negro, na luta contra o racismo e a precarização das vidas negras, estejamos seguras. Pois ainda há uma reprodução cistemática da violência patriarcal, espelhada no exemplo do homem branco colonizador que impõe o controle a partir da manipulação de diversas formas de violência para se manter no poder.

Pessoas cis negras precisam ser ensinadas a respeitar as travestis e mulheres trans negras. A entender que não há nada de errado em conviver com nossos corpos, a se relacionar afetivamente ou sexualmente com pessoas trans negras. A nos acolher nos espaços de luta, nos ouvir e potencializar nossas vozes.

Enquanto gritamos “Não à Transfobia”, eles dizem que estamos enfraquecendo a luta antirracista e muitas vezes nos silenciam. Dizem que somos todos pretos e que a luta caberia todas as pessoas negras, mesmo a comunidade LGBTI+ e especialmente as pessoas trans serem vítimas constantes de apagamento em qualquer outro espaço fora do movimento LGBTI+, e dentro dele também. Como se não pertencêssemos ou fizessemos parte das outras lutas, ignorando nossa subjetividade e as dores que nos unem. Como se não fossemos negras.

(…)Parece que sempre existe o risco de o discurso levantado para denunciar a violência se tornar uma arma perigosa nas mãos do sujeito que sofreu dominação, na medida em que ele se constitui fora da trama da produção de poder, vestido com autoridade e uma verdade livre de todas as evidências. (…) Como a política que fazemos, o grito que fazemos contra o que nos viola não nos exime de nossa própria capacidade de infligir dor e violência a outros. Não importa o quanto tenhamos solidariedade com aqueles que foram objeto de desapropriação, não importa o quanto nos identifiquemos com esse lugar e gritemos o mal que eles fizeram conosco, nada nos livra de nossa responsabilidade de trabalhar duro para ser outra coisa senão o que denunciamos ou dizemos lidar. Algumas estratégias de justiça e reparação institucional, mas também os movimentos, parecem esquecer isso. Que existe uma diferença entre a raiva digna que denuncia o mal de uma posição ética radical e o ódio daquele ou daqueles que, tentando destruir o que o nega, passam a personificá-lo e a sua continuidade. (Trecho de “O reverso da ferida” de Yuderkys Espinosa Miñoso)

Todo este processo de violência tem impedido que cheguemos aos espaços das lutas ou da disputa política, porque estes não são seguros para nós. Temos sido mantidas à margem. Especialmente as travestis e mulheres trans negras, que são maioria na prostituição de rua, maioria com dificuldade de acesso à saúde e políticas públicas. Maioria no cárcere e maioria fora dos espaços educacionais ou políticos.

E tudo isso dói. Marcinha, mulher trans, negra, 28 anos, foi assassinada ontem, no mesmo bairro que moro e enquanto eu finalizava este texto que vem sendo construído há alguns dias pela dificuldade de escrever sobre o tema.

Estamos no mês do orgulho e é muito bonito observar todas as manifestações do celebram Marsha P Johnson, mas ignorar a travesti preta que está em situação de rua na esquina perto da sua casa. Ver as pessoas aplaudirem o casting de POSE por serem famosas, mas não lêem sobre as fundadoras do movimento trans nacional — em sua maioria negras. Participarem de manifestações antirracistas, mas não contratar uma travesti para um freela ou repudiar a mulher trans negra que é prostituta. Compartilhar artigos sobre violência na comunidade trans, mas não consumir artistas trans.

Calar diante da transfobia é consentir a violência contra pessoas trans.

Oprimidos do mundo, uni-vos!

REFERÊNCIAS

[1] Homen Trans Negros, Tony McDade é assassinado na Flórida. Disponível em: https://www.refinery29.com/en-gb/2020/05/9846131/tony-mcdade-police-killed-tallahassee-black-transgender-man Acessado em 30/05/2020.

[2] No Brasil, em 2020, temos 64 casos de assassinatos de pessoas transacionadas, de acordo com o Boletim nº 02/2020, publicado pela ANTRA.

[3] Tag #justiceforiyannadior.

[4] Cissexismo é ideia que legitima unicamente as identidades cisgêneras enquanto deslegitima as identidades transgêneras, garantindo privilégios às pessoas cis, negando acesso e permitindo violência contra as pessoas trans. (ANTRA, 2020).

[5] Dossiê dos Assassinatos e Violência contra pessoas trans no Brasil. Disponível em: https://antrabrasil.org/assassinatos/ Acessado em 05/06/2020.

[6] Texto de Helena Vieira, Onde estavam as Travestis durante uma ditadura? Disponível em: https://revistaforum.com.br/osentendidos/2015/04/05/onde-estavam-travestis-durante-ditadura/?fbclid=IwAR1buZ-Sb4YuE0gkyM7oTw3v6q4sTCs2dNgy_kNp9sYSDDHGgMSV8mvkn/06/ .

[7] Dia Internacional da memória Trans. https://en.wikipedia.org/wiki/Transgender_Day_of_Remembrance

[8] Pensar interseccionalmente ou morrer coletivamente - reflexões sobre mortes de Demétrio e João Pedro. https://www.nohssomos.com.br/2020/06/10/pensar-interseccionalmente-ou-morrer-coletivamente-reflexoes-sobre-as-mortes-de-demetrio-e-joao-pedro/ Acessado em 11 / 06/2020.

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Bruna G. Benevides
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Written by Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!

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