Qual a responsabilidade da Cisgeneridade na violência contra pessoas trans?

Bruna G. Benevides
5 min readAug 18, 2020
Gisberta Salce, assassinada há 14 anos em Portugal virou símbolo da luta contra a Transfobia.

Sobre a transferência de responsabilidade.

Toda vez que vemos casos de violência contra pessoas trans exposto na rede social, observamos uma constante marcação de instituições e pessoas trans a fim de que sejam acionadas para tomar alguma providência, como se compartilhar ou marcar alguém resolvesse a transfobia.

Isso sempre me chama atenção porque fica parecendo que marcar alguém sem tomar qualquer atitude concreta ou compromissada com o enfrentamento da transfobia seria algum tipo de ajuda, quando na verdade nos parece mais com a cisgeneridade se omitindo.

O compartilhamento e a espetacularização da violência serve ao propósito de nos lembrar diariamente que podemos ser as próximas. Nós, vocês não! Mas também pra dizer o quanto vocês naturalizaram a violência contra pessoas trans.

Acredito que todes devemos refletir na exposição das violências contra corpos de pessoas negras, trans e demais. Porque pra muita gente a Dandara é um livro, um vídeo de horror, uma tese ou uma escultura em NY.

Mas ela sou eu e muitas outras pessoas.

As vezes vezes chego a pensar que esses compartilhamentos são mais para uma espécie autopiedade benevolente, que se comove com a desgraça, sem reagir, e para um certo alívio de culpa do que querer resolver o problema de fato. Quais ações anti transfobia temos tomado em nosso dia a dia?

A quanto tempo se sabe que o Brasil é o país que mais assassina pessoas trans do mundo, tem índices altíssimos de estupro, é o quinto em feminicídio etc. e amanhã já teremos esquecido esse caso da menina que foi agredida no rio e expondo outra vida desgraçada pelo Brasil. É sobre isso.

Vocês são muito emocionados e sempre que aparece esse tipo de violência vocês estão prontos para nos acionar. Nessa hora, vocês não tem lugar de falar para ajudar. Estão sempre muito emocionados com seus gatilhos, mas nunca disponíveis para ajudar.

Quais nossas ações você pode tomar no dia a dia contra a transfobia ou em apoio as pessoas trans?

Em geral, são pessoas que não consomem nada de pessoas trans, além da nossa desgraça. E é exatamente por isso que se sentem seguros em fazer essa transferência de responsabilidade sobre a violência que o cissexismo impõe sobre nós.

São pessoas que não se importam com o fato dessa violência ser o nosso dia a dia ou quantos gatilhos serão acionados quando vocês nos expõe a ela. Vocês não se importam se estamos bem para receber esse tipo de notícia ou se estamos precisando de alguma ajuda.

“Ah, mas eu não sei o que fazer!”

Não sabem porque nunca se importaram. Sempre jogaram sobre nós a responsabilidade de termos que cuidar dos nossos.

São pessoas que não se preocupam em acolher a vítima. Buscar informações de como denunciar e criar movimentos de apoio as pessoas trans vítimas de violência ou prestar apoio psicológico e social. Que não participam de discussões sobre como garantir que uma mulher trans enquanto profissional do sexo possa trabalhar sem estar sobre risco ou discutir a regulamentação da prostituição. Ou ainda em criar estratégias e oportunidades para que o trabalho sexual não se torna uma dependência ou única possibilidade de existência para as travestis.

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), cerca de 75% da população não conhece uma pessoa trans. Não convive ou teve contato com a nossa população. E isso diz muito sobre os mitos e tabus que são colocados contra nós, mas principalmente sobre a transfobia ser tão aceita na sociedade.

Especialmente sobre a violência que somos submetidas onde, em geral, nos colocam como responsáveis por ela. Nem o direito de ser vitimas nos é dado. Nossas narrativas e denuncias são quase sempre desacreditadas. (Dossiê dos assassinatos e da violência contra pessoas trans brasileiras, ANTRA 2019)

Eu não estou falando isso ignorando o lugar que as instituições e o compromisso que algumas pessoas tem com nossa luta, mas é no sentido de chamar atenção para que vocês também possam fazer algo além de nos marcar. Para enfrentar a isenção cisgenera frente a violência contra pessoas trans.

A violência contra pessoas trans é o CIStema operando em sua mais perfeita atuação ao violar corpos fora da norma cis-hetero-cristã.

Dói ter que juntar esses cacos de quem sobreviveu, contar uma história que se perdeu e transformar a realidade a partir da dor. É cansativo educar aliados, quando é a nossa vida está em risco.

Cansada de discutir necro-CIS-política com quem já tá morta, com quem nasceu morta. Nunca vamos discutir a política de morte contra pessoas trans? A desumanização de nossas vidas?

Eu fico perplexa em ver que a vaquinha de um homem trans pra fazer a mastectomia muitas vezes não consegue alcançar o objetivo, mas quando se trata de pessoas que foram violadas ou violentadas, aí realmente a gente acredita que é possível fazer algum tipo de reparação com dinheiro.

O Brasil gosta da violência e da morte. O país naturalizou um processo de marginalização e precarização para a aniquilação das pessoas trans. É um processo similar a desumanização e despersonalização que a escravidão — com o aval da igreja — impôs as pessoas negras ou Hitler impôs aos Judeus.

Precisamos romper com a subalternização das pessoas trans ou a naturalização do lugar da desgraça como único destino. Humanizar, resgatar a auto estima, atribuir autonomia, fortalecer essas pessoas para podermos construir uma perspectiva menos idealista e mais real, palpável. Que transforme a morte em vida e não comemore a morte, não a compartilhe ou explore.

Sabe aquele mito de que pessoas com deficiência, vivendo com HIV/Aids, transvestigeneres, pretas… são heroínas? Deveríamos pensar que cada uma dessas corpas merece cuidado e afeto nas reiteradas violências que sofrem.

Além de esperar que nós façamos algo, façam alguma coisa vocês. Parem de se isentar!!!

Nós estamos morrendo e vocês aí, compartilhando.

Compartilhem nossos talentos, nossas conquistas, nossas escritas e produções. Marquem pessoas trans em oportunidades de emprego e espaços que nos fortaleçam. Criem ações, projetos e atividades que ajudem pessoas trans. Divulguem e contratem pessoas trans. Valorizem nosso trabalho!!!

Texto inspirado em um post da Magô Tonhon

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Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!