Qual representatividade queremos?
Todas as pessoas tem suas vivências, experiências pessoais e muitas experiências coletivas, pois mesmo em intenção deliberada, ninguém está sozinho. Podemos ainda afirmar que qualquer pessoa é uma possibilidade de representação. Mas afinal, o que seria essa tal de representação muitas vezes confundida com representatividade?
Ser algo/alguém lhe inclui, e você então passa a fazer parte de um grupo sendo pertencente a ele, isso lhe constitui, mas esta determinação te habilita a representar este grupo e enfrentar a estrutura excludente e violenta em que estamos inseridas ao falar em nome dele?
Podemos sugerir que a representatividade pretende garantir a participação de indivíduos, sob um olhar interseccional (ou não), para representar politicamente os interesses de determinado grupo, classe social ou de um povo ao qual faz parte. Acredito que a representatividade é sobre o quanto as pessoas se veem e os seus interesses representados por quem desponta em espaços que antes nos eram negados.
A representação é, portanto, uma relação de confiança, controle, prestação de contas e autonomia entre representantes e representados e, por se dar no âmbito da política, vai depender de uma correlação de forças e vontades políticas que se colocam em discussão e negociação nos espaços de debate e deliberação como os conselhos, por exemplo. Existem organizações da sociedade civil que utilizam um tipo específico de representação, a chamada representação assumida, quando atuam em nome de uma determinada coletividade, muitas vezes sem formas claras e compartilhadas para sua autorização e, em muitos casos, sem mecanismos de controle de sua atuação. A questão é polêmica porque a falta de representatividade pode deslegitimar os conselhos. (REPRESENTAÇÃO E REPRESENTATIVIDADE NOS ESPAÇOS DE PARTICIPAÇÃO CIDADÃ — Lizandra Serafim e Agnaldo dos Santos)
A representatividade é necessária e importante, mas também pode ser bem problemática em casos onde não se entende o que pretendemos ao eleger à representação como único marcador para garantir a participação de determinados indivíduos nos espaços de disputa e construção coletiva, seja na arte, na educação, na política ou em qualquer espaço formal, não formal ou informal.
Tenho refletido e tentado discutir com outras pessoas trans, mas não me limito somente a elas, a partir destes aspectos sobre quais representações nos representam de fato, especialmente quando pensamos enquanto seres políticos que somos e permeados por padrões previamente desenhados para nós. A representatividade deve antes ser vista além do que a pessoa é ou espaço que ocupa, reflete e questiona sua presença aliada à sua trajetória de vida e de luta, para ser capaz de refletir em demandas coletivas naquilo que ela representa (ou deveria representar). Leva-se em conta o lugar de pertencimento e relacionamento com um determinado grupo/coletivo, sua estada e capacidade de sempre atrelar consciência de classe, conseguinte senso de coletividade.
Pensando sobre representatividade trans, a ausência muito sentida de representantes trans em espaços que agem sobre o tônus de determinados grupos. Vide pessoas trans na/da educação, que apesar de serem poucas, dado tamanho do país, ainda seguem sendo esquecidas em situações cotidianas sobre educação e escola. Valendo lembrar que a população mais penalizada dentro da escola, ainda é a comunidade trans, logo, como falar de educação e esquecer do principal grupo afetado? O mesmo na política, onde temos nossas representantes e sua atuação ainda tuteladas pelos partidos, pelos dirigentes, ou setoriais, em geral compostos/presididos por homens, cis, brancos e de classe média.
A representação tem compromisso com uma visibilidade positiva para nossa população, mas estariam todes sujeites amparados em sua consciência para exerce la? Faria aquele sujeito carregado de privilégios, parte daquele grupo que diz pertencer? Tem consciência política e exerce a partir de seu lugar de fala? Tem consciência de classe, raça, credo (ou não), “capacidade”, gênero e tantos outros privilégios? Entende e se posiciona contra os processos de exclusão, violência, negação de espaços e precarização da vida do grupo que pertence?Compreende a reflexão representação versus representatividade? Entende que o lugar que ocupa foi alcançado pela luta de pessoas que já vinham nessa construção, que não foi dado de graça e/ou pelo que ela é, mas pelo que representa (pode vir representar)?
Em tempos de fakenews, polarização política das pautas políticas, tenho tentando de forma muito cuidadosa observar alguns destes aspectos como norteadores para me identificar — ou não, com pessoas que são colocadas neste lugar de representatividade. E assim, tentar pensar que se a pessoa não tiver alguns destes (e outros) elementos em sua vivência/trajetória, em sua atuação política ou mesmo na militância, ela não deveria ser lida como alguém com representatividade suficiente para representar determinado seguimento da população. E não deveríamos alavancar estas pessoas.
Estamos falando de uma disputa da narrativas capazes de promover um rompimento real com a exclusão e os processos de vulnerabilização das vidas das pessoas trans. Caso contrário, é uma representatividade vazia e que favorece apenas o indivíduo. E são estas mesmas pessoas, com este comportamento mesquinho e egocêntrico estão falando por nós — reproduzindo a lógica cis-centrada. E não podemos aceitar essas práticas em nosso meio.
Que representatividade queremos?
Fernando Holiday é um homem Cis gay e negro, e se posiciona contra pautas caras para o movimento negro, contra cotas raciais e é anti movimento LGBTI. Ele tem lugar de fala e a representatividade a partir destes marcadores. Mas a serviço de quem está a sua representação? Onde estão a consciência de classe, senso de pertencimento e consciência política e critica sobre o racismo e homofobia estruturais?
Nany People no papel de Marcos Paulo, é uma mulher transexual, atriz, e tem lugar de fala e representatividade trans na arte. Mesmo com carreira consolidada e trajetória artística reconhecida, aceitou um papel visto como problemático para a maioria da população trans. Papel este que foi criado por revanchismo do autor pela luta das pessoas trans na arte, e que representou uma violência e a perpetuação de estigmas contra muitas de nós (que bom que já acabou e foi um fiasco de audiência). Porém ela também deixou a desejar em relação a consciência de classe e consciência política. Exemplos como estes, inclusive no campo progressista não nos faltam. E é exatamente por isso que precisamos discutir sobre representatividade.
Principalmente quando ela surge totalmente descompromissada com o restante da população. Acredito que não foi neste sentido que o movimento de artistas trans passou a pautar a importância da representatividade de pessoas trans na arte, porque de certa forma, temos uma pessoa trans. Mas e nós que não estamos lá, nos sentimos representadas por ela?
Representatividade sem compromisso não tira travesti da marginalidade, e neste caso, ajuda a perpetuar estigmas. E é aí que talvez seja o principal problema da representatividade sem compromisso com o coletivo social e com as pessoas, e que seja capaz de promover uma quebra de paradigmas para além do individuo.
Sou totalmente avessa a uma representatividade descompromissada com nossas vidas. Pois perdemos o foco do coletivo e vemos emergir diversas pessoas que utilizam dos espaços que a representatividade criou para representarem unicamente a si mesmas.
Este ano comemoramos 50 anos de Stonewall. Um dos momentos mais importantes e que marcam uma revolução no movimento LGBTI, liderada por uma travesti, preta, prostituta e que sofreu diversas tentativas de apagamento na história. Mas estamos aqui para lembrar de Marsha p. Johnson e Sylvia Riviera que abriram este caminho para chegarmos até aqui.
E se hoje temos visibilidade, representatividade, de artistas, na política, professoras e professores trans, doutoras, etc, foi porque a representantividade destas, e muitas outras pessoas, estava a serviço de nossa população e não apenas dos seus interesses pessoais.
Estamos falando aqui em processos, que exigem de seus participantes amadurecimento suficiente para debater, avaliar e, quando for o caso, promover as mudanças que se façam necessárias. Como já foi escrito em outros lugares, a democracia é uma eterna construção, e seu aperfeiçoamento exige disposição contínua para reavaliações.
Qual representatividade você quer? Ou melhor, qual representação sua estada nesse caminho, agrega à questão da representatividade?
Sente se, e me dê a mão, isto não é um ataque.
Vamos refletir junts.
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Artigo Revisado por Sara Wagner York