Quem é Trans e quem não é?

Bruna G. Benevides
12 min readFeb 12, 2020
Nikki de Jager

Nomear, antes de mais nada, é o ato de reconhecer aquela existência como legítima, possível. Respeitando as nuances, o ponto de confluência das identidades e principalmente para saber quem é o sujeito do direito, suas necessidades e limitações. Não como um estatuto da realidade, mas como uma ferramenta de mediação da realidade e através da qual nós acessamos as percepções, sensações e sentimentos do analisante, a cerca da sua própria realidade.

A Transfobia, por sua vez, é discriminação motivada por sentimentos negativos e reações muitas vezes desproporcionais e violentas em relação a identidade de gênero percebida e não necessariamente pela declarada. Muitas vezes não conseguimos declarar. As pessoas já vêem nossas identidades marcadas em nossos corpos e vejam, na nossa expressão de gênero.

Existem duas dimensões centrais para pensarmos as questões de identidade: A dimensão Individual sobre como me relaciono com minha identidade (que não é dado subjetivo mas resultado de um processo social) e como o coletivo enfrenta estes processos, onde um se (retro)alimenta do outro e ambas formam o que temos dito que é como nos identificamos. Sendo o sujeito pessoal, capaz de se autodeclarar da forma com que se sentir mais confortável e livre para experienciar aquilo que acredita ser o melhor para si.

Enquanto no coletivo, as identidades pautadas nas demandas políticas conjuntas, de pessoas que requerem cuidados, políticas públicas e acesso a cidadania — no sentido da organização socio-jurídica do estado, são aquelas que delimitam quem é este sujeito e quais direitos (e deveres) devem ser pensados para estes poderem acessar. É importante frisar que não estou fazendo defesa da norma, estou explicando como ela funciona, para que, enquanto não conseguirmos causar uma ruptura radical e experimentar um novo arranjo social (ideal), possamos garantir direitos (no mundo real, no hoje), e consequentemente existências. E neste campo, é importante nomear as pessoas.

Se não existe a palavra, não existe a realidade. E a partir do momento em que a gente tem uma palavra específica para dar cabo de uma realidade, a gente consegue enxergar essa realidade através de uma nova perspectiva. Nossa formatação enquanto sujeito está mediada pela linguagem na medida que o sujeito se insere em uma ordem simbólica que o antecede. Quando a gente não tem a palavra para decodificar a realidade, a gente tem dificuldade de enxergar a realidade. A ideia que se tem é que até que um conceito se torne comum, a gente pode ver a realidade, mas a gente não consegue entender o que a gente tá vendo na nossa realidade. (Rita V. Hunty)

Tudo que conhecemos que existe, foi constituído a partir do discurso. E o discurso é o modo como a mensagem é passada de uma pessoa para outra. A ideia de não nomear é muito próximo da ideia de abolir gênero. O que é uma grande armadilha radfem e gays anti-trans a serviço de grupos conservadores e fundamentalistas de gênero, que querem na verdade abolir pessoas trans. A ideia de Abolir gênero é, antes de mais nada, um privilégio cis. E neste momento não passa de um histerismo anti-trans destes grupos que defendem exclusivamente o cissexismo.

Faz anos que vimos discutindo a importância de termos um entendimento sobre o que é e quem seria uma travesti (sujeito político), por exemplo. Não apenas para desenhar sua diferença, mas para entender seu corpo político como um corpo demandante de cuidados. E é a partir desta nomeação que sabemos quem ela é, e iremos identificar os processos que as travestis vivenciam no transcurso do seu dia a dia e como poderemos enfrentar as violações e violências que estamos submetidas.

Neste sentido, se uma pessoa Cis é aquela que se identifica com o gênero atribuído no nascimento. Ser Trans é exatamente o oposto, sem que isso limite as identidades trans ao binarismo de gênero. A autodeclaração reconhece o direito de qualquer pessoa expressar quem ela é em sua vivência individual e não coletiva, e precisa ser defendida em sua integralidade. Mas me parece um tanto difícil admitir exclusivamente a autodeclaração de gênero como único marcador, ignorando completamente a performance e a expressão de gênero das pessoas, além da própria leitura social que a pessoa tem de si ou que outros tem sobre esta.

Uma pessoa que não usa nome social — que é uma tecnologia especificamente pensada para pessoa trans, ou alguém que abre mão ou não se importa com os pronomes que será tratada, que não aproxima seu corpo da sua identidade, que não deseja alterar documentos ou ser lida como não cis, que mantém uma leitura social cisgênera e não abre mão dos privilégios cis, precisa observar as dinâmicas que as pessoas trans estão submetidas.

Vou propor um exercício:

Você sabe o que está vendo? As pessoas estão vendo o mesmo que você?

Tenho pensado no quanto tem sido a expressão de gênero e a leitura social das pessoas cis sobre nós, que faz com que sejamos mais ou menos suscetíveis ao racismo, às injustiças, a violência e a transfobia propriamente dita. E isto também se reflete em nossos corpos. Concordo que não precisamos de intervenções em nossos corpos para ser quem somos. Elas não nos definem. Mas importam, muito. E para muitas pessoas.

E aqui não estou falando de “trans verdadeiro”. Mas de um sistema de opressão que alcança pessoas que abrem mão da cisgeneridade compulsória e que reconstroem suas identidades de forma que seus corpos sejam também capazes de expressar quem são, marcando o sujeito marginal e não cisgênero no espaço social onde quer que ela esteja, antes mesmo de ela abrir a boca. Tenho dito que a constituição de uma identidade não é abstrata, sendo assim, antes de tudo, a busca de um ideal estético. E sabemos muito bem que uma estética travesti é facilmente nomeada e reconhecida, apesar de não ser homogênea, e está diretamente relacionado sobre nosso lugar na sociedade.

Neste sentido, se alguém “abre mão” da cisgeneridade mas segue seus ritos alinhada com a performance (expressão de gênero) cis — o que diz muito sobre o quanto esta mesma pessoa estaria disposta a abrir mão de seus privilégios, é como cis que ela será lida, recebida e entendida, mas também beneficiada pela sociedade — se beneficiando na mesma medida.

Não podemos simplesmente ignorar isso ou aceitar ideia de que “uma mulher trans pode ter barba”, enquanto estamos falando de uma ruptura com os símbolos de uma masculinidade imposta às pessoas que nasceram com pênis, ou ainda no mesmo momento em que estamos lutando pelo direito de o SUS oferecer laser para estas mulheres que sofrem com pelos no rosto — novamente, individual versus coletivo. Como ficam estas pessoas e as políticas públicas que temos pensado para elas? Vocês querem ter barba, ok. Vivem bem com isso, ok. Mas é elas ? Só importa vocês e suas teorias mesmo ?

E aqui vale um ponto importante: A barba é vista como um dos maiores símbolos de expressão da masculinidade. Especialmente a masculinidade tóxica que, ao não ver o falo a mostra, cultiva e expõe a barba espessa como um trófeu. Confundindo-se com o próprio homem e como a masculinidade está representada, tornando a barba como um símbolo de virilidade e poder — entre os homens.

E aqui eu posso afirmar que a teoria QUEER— além de ser uma teoria, não é sobre TransAtivismo. TransAtivismo é a idea radical de que pessoas trans pessoas, demandantes de políticas públicas, direitos e processos outros de constituições de suas identidades e existências para além da cisgeneridade — e da teoria QUEER, obviamente.

Como vamos aceitar simplesmente a ideia de que uma trans não precisa se hormonizar para “ser mulher”, ignorando os efeitos positivos que as modificações trazem para estas pessoas ? Esta pode não ser a sua demanda, mas isso não quer dizer que outras pessoas não precisam/desejam e que isso se reflete no bem estar, e principalmente na forma com que esta pessoa se vê e é vista na sociedade.

Sei que pode parecer que há um olhar patologizante por trás desta discussão. Mas este não é o ponto. Penso que não vai ser deixando de acessar estas tecnologias que elas deixarão de existir. Elas não são a causa, mas a consequência dessa estrutura cistêmica de gênero sobre quem vai definir as funcionalidades do corpo e o regime de organização social no qual se insere. As funcionalidades decorrem dos instrumentos dispostos para, tanto se compreender, quanto se (re)construir o próprio corpo e a estética trans — que se afasta da cisgeneridade.

Pessoas trans que estão em processo de autoidentificação e em um processo inicial de adequação dos seus corpos precisam ser acolhidas e são válidas. O acesso as políticas públicas não é fácil e simples. E há aquelas que não querem ou não podem realizar mudanças, como disse, elas são importantes, mas não nos definem. Porém, terão outros marcadores para refletir quem são em suas expressões de gênero e forma como será lida na sociedade. Seja através de roupas, cortes de cabelo ou diversas outras formas de se expressar.

É importante frisar: ser trans não é sobre roupas. Mas elas podem e devem ser pensadas como ferramentas de expressão de nossa identidade — não como reprodução de estereótipos, pois de acordo com Bia Pagliarini: ‘’existe uma diferença entre usar as roupas por se identificar com elas, e dizer que existem roupas para homens e para mulher’’. Aliás, não tem sentido algum roupas ‘’sem gênero’’, já que roupas não tem gênero.

Ser trans não é apenas sobre abrir mão de cisgeneridade, mas é sobre construir outras formas de ser e existir que desafiam a própria estrutura corporal, a ética e a estética da engenharia social. Criar novos corpos, ciborgues. Maculados. Inclusive você pode não se identificar com a cisgeneridade, mas não necessariamente ser trans.

E este texto é, também, sobre isso…

Diante de alguns comentários e ponderações que me foram enviadas, deixo aqui mais algumas reflexões.

Que bom que todes pararam para ler o texto e refletir.

Acho que este movimento de prestar atenção e discutir entre nós me parece ser um bom caminho para seguirmos avançando no entendimento daquilo que queremos construir.

Meu texto não fala de pessoas cis. Fala de pessoas que não se conformam com a cisgeneridade. De como reagem ou não a isso. Fala sobre transconveniencia e a confusão, e violência, causada pela leitura que as pessoas tem ou não a nosso respeito.

Eu tento situar meu texto sobre as questões relativas ao que venho chamando de leitura social. Que é a forma como somo lidas na sociedade, que identifica nossa forma de nos expressar a partir dos marcadores de gênero que ostentamos (ou não) para que tenhamos acesso e garantia de direitos.

Eu falo disso bem no início do texto.

Podemos e devemos questionar esta norma. Mas estamos fazendo ? Quem está ? Quantos coletivos ou grupos estão enfrentando o estado e as normas para construir políticas públicas ou demandas de nossos grupos ? A Carolina Iara traz um ponto super importante: pessoas Intersexo, em geral usam das demandas pautadas por pessoas trans diádicas (não intersexo). E percebendo isto, passaram a se organizar, criar coletivos, instituições que as representem para tensionar por suas demandas. Penso que pessoas NB deveriam fazer o mesmo. Mas como não sou nb, deixo essa reflexão para quem é.

E sobre o que estou falando: Sobre pessoas que permanecem com uma leitura em conformidade ou aproximada do gênero designado no nascimento. Sem abrir mão dos espaços que isto que lhes permite ocupar, que lhes permite serem validadas por uma leitura cisgenera em detrimento da sua não-conformidade-ocultada.

Se estamos falando dentro de uma estrutura binaria de gênero, devemos atentar que será com este olhar que seremos ou não validadas nestes espaços. E aqui eu falo do mundo real, onde temos vivencias pessoais, mas também com nossos pares, locais onde transitamos e ouvimos o que dizem.

Eu ouso dizer que não somos desumanizadas pela nossa identidade, mas pela nossa expressão de gênero (e de como ela é lida). E assim, usando os marcadores da cisgeneridade ou abrindo mão deles para ter ou perder privilégios cis. Penso que a identidade mesmo sendo subjetiva, é constituída coletivamente. Mas é como nos expressamos que diz quem somos (leitura social). E esta expressão que me refiro parte da ideia de uso dos símbolos de gênero. (Como disse, esta não é uma defesa da norma, mas um chamado de atenção para que tenhamos consciência de como essa tecnologia se manifesta no dia a dia — especialmente no coletivo)

Eu não disse que pessoas trans fazem modificações corporais para passar por cis. Disse que fazem porque aquilo as incomoda. Inclusive falo das pessoas que iniciam o processo de transição e de suas limitações. As pessoas que querem passar por cis após modificações corporais tem o direito, apesar e a despeito de qualquer crítica que venhamos a fazer. Assim como quem deseja se manter com uma leitura ‘’masculina’’ sendo alguém designada como masculino no nascimento e se reconhecendo enquanto não-cis.

Afinal, é a não conformidade que nos coloca como pessoas trans… ou estou enganada ?

Quando eu não sou explicita sobre quem é trans é quem não é, é porque isso não nos cabe. Não defendo as mudanças corporais como meio de validação de pessoas trans, mas aponto que a escolha de não realizar (sem ignorar quem não as faz porque não pode e isso é um outro ponto que falo no texto), faz com que muitas sejam lidas como cis. E que as que fizeram tenham suas vidas abjetificadas e portanto não se encontram na mesma medida em termos de vivências, experiências ou violência.

Uma pessoa designada como homem no nascimento, que é NB, que mantem e ostenta características ‘’masculinas’’ será contratada para um emprego, enquanto uma travesti feminina, com silicone no rosto, e barba não. Esta explicito nestes dois exemplos quem abriu mão e quem não abriu mão dos símbolos que representam nossa opressão. Não somos somente oprimidas por expressar o gênero feminino, mas soma-se a isso negar o poder masculino — o topo da cadeia!

Como disse Sara: Infelizmente mulheres trans não tem o mesmo conforto que homens trans quando o assunto é aderência a cisgeneridade.

Quando falo abrir mão da cisgeneridade, tento instigar as pessoas a refletir até que ponto sua não conformidade de fato lhe faria uma pessoa trans. Mais uma vez: não sou eu quem tem de dizer. E penso que ser cis ou trans parte de um pressuposto binário. Inclusive um é conformidade e o outro não-conformidade. E isso implica na aceitação ou não dos símbolos da compulsoriedade cisgenera (que é a norma).

Partindo desse principio, não nego a existência de pessoas NB em nenhuma parte do texto. Ele não é sobre pessoas NB, mas sobre travestis, mulheres trans e demais pessoas trans que não se conformam com caracteres símbolos da cisgeneridade e sentem disforia, ansiedade, etc.

Inclusive acredito que pessoas NB devem estar nesta discussão sobre suas experiências. Sem que isso pareça que estamos apagando ou negando essa possibilidade. Ou que a NB se torne a regra. Os incômodos surgirão, surgem diariamente com todes que estão aqui. E o que nos move é o que fazemos em relação a eles. Mas não podemos negar que grande parte, se beneficiam das demandas trans binárias (retificação registral, alterações corporais, etc), em um grau ou outro.

Eu não sei se pessoas NB seriam necessariamente trans. São coisas para pensar. Nossos referenciais são binários ou de teorias que ignoram nossa realidade em detrimento de teorias, algumas que não passam de teoria e que só fazem sentido na academia, homogeneizando existência e ignorando subjetividades.

E para chegarmos a este ponto, existe sempre algo que é anterior: o gênero, suas tecnologias e sua dinâmica de hierarquizar corpos. E o que iremos fazer quanto a isso é que exprime a experiência de cada pessoa. Algumas mais conformadas com a regra binária, e outras nem tanto. Fato é que abolir gênero me faria ser lida como um homem pela sociedade. Por isso falo que isso é privilégio cis.

Vou dar um outro exemplo: uma mulher cis e uma trans, as duas com câncer. Ambas perdem seus cabelos. Vocês acham que ambas terão a mesma leitura ao serem vistas carecas pela sociedade. Então porque dizem que reforçamos esteriotipos de gênero enquanto para mulheres cis seria algo natural?

Não acho que as coisas se anulam. Fica sempre parecendo que quando colocamos um ponto, os outros deixam de existir. Também não acho que Trans tem que caber todo mundo. Simplesmente não acho que caiba.

Inclusive me causa um incomodo ver pessoas que nunca comentam se levantarem para apontar suas inquietudes exclusivamente sobre este assunto e calarem-se em tantos outros onde deveriam se posicionar. Seria bom que isso virasse uma prática em todos os espaços. Não temos tempo para o silencio. Ele não nos protegerá (como disse: Audre lorde).

Acredito que neste ponto já temos um avanço e fico feliz que tenha sido possível a partir de uma provocação minha. Podemos e devemos discordar, refletir, tensionar, para que todes possamos avançar. Com respeito e cuidado com o outro como vem sendo feito nesta discussão.

Nós precisamos aprender a lidar com a diferença entre grupos. Nós buscamos EQUIDADE, não igualdade. Coletividade, não individualidade.

_____________________________________________________

O texto é sobre leitura social (odeio o termo passabilidade). E o uso da foto da Nikki de Jager foi intencionalmente para provocar sobre o quanto a invisibilidade pode parecer confortável, até que alguém jogue na sua cara a sua condição como algo inferior. Onde nem mesmo sua leitura social cisgênera foi capaz de lhe proteger da transfobia.

--

--

Bruna G. Benevides

Sargenta da Marinha, Feminista, nordestina e TransAtivista. Diversidade acima de tudo, democracia acima de todos!