Serei revistada por um homem?
Na esteira para embarque do Galeão, sou “escolhida” para participar da revista individual. (Aliás, todas as vezes que vou embarcar ou estou voltando sou escolhida. TODAS!)
Neste momento, a atendente chama um homem para vir me revistar. Eu afirmo que não aceito ser revistada por um homem. Ela chama o chefe da equipe.
Eles cochicham algo, riem e ela se aproxima pedindo minha identidade. O que de pronto perguntei o motivo e se este era procedimento padrão, visto que outras pessoas que também estavam sendo revistadas não teriam apresentado a identidade. Mostrei a identidade retificada e a revista seguiu sem maiores contratempos. E me pergunto como seria se não tivesse!
O Aeroporto do galeão é um velho conhecido quando se trata de violar nossos direitos. A Candy Mel (Cantora da Banda Uó) também foi vítima desse tipo de abuso. Inclusive colocando os seios a mostra em revista pública vexatória realizada por homens. Isso é inadmissível!
Assim como aconteceu comigo, há vários relatos de pessoas trans que são humilhadas e tem sua intimidade violada na hora da abordagem policial. Muitas vezes por uma formação deficiente, desconhecimento e repulsa ao assunto, transfobia ou todos esses fatores somados.
Há um resquício saudoso da ditadura por parte de muitos agentes da segurança pública, que veem travestis e transexuais em um único lugar, subalterno, marginal e violento — apesar de muitas coisas estarem mudando. Nada me faz esquecer da Operação Tarântula ou mesmo da ação em 2017 do Prefeito Dória em SP, que prendeu 20 travestis porque estavam trabalhando na prostituição.
Até hoje, a população LGBTI tem medo de procurar a policia, efetivar denuncias ou buscar qualquer atendimento, pelo tratamento desumano e degradante a que sempre fomos expostos — lembremos do caso Veronica Bolina. Somos vistas como inimigas, causadoras da desordem, violentas ou envolvidas com roubo ou uso de substancias ilícitas.
Homens trans muitas vezes são ridicularizados pela sua estatura e porte físico, tendo seus corpos expostos ao serem obrigados a retirar o binder ou ainda sofrendo violência devido ao uso do paker que pode ser confundido com uma arma e/ou são obrigados a explicar o porque do uso do mesmo para tentar minimizar a abordagem vexatória, em uma situação totalmente estressante e violenta. Não tem o nome social ou a identidade de gênero respeitados, sendo exposto seus nomes de registro e tratados no feminino, ou ainda ouvem piadas jocosas sobre seus genitais.
No caso de travestis e mulheres transexuais, as coisas se tornam ainda piores, pois há todo um estigma de violência e marginalidade, onde dificilmente vemos o nome social ou a identidade de gênero respeitados. Somos separadas das demais mulheres se estivermos em grupo. Revistam nossas bolsas e corpo de forma invasiva e vexatória, usam força desproporcional e há sempre um ar sarcástico e trocadilhos na abordagem. Isso quando não ocorrem assédios ou toques com teor sexual em nossos seios ou genitais.
Há ainda casos onde policiais ficam evitando ser escalados para a abordagem, jogando de um para o outro a responsabilidade de quem irá colocar as mãos do corpo do traveco(sic). Se for uma mulher trans, negra, não-passável, prostituta ou moradora de rua, as coisas tendem a ficar bem piores.
O fato é que sempre surge a questão de quem irá fazer a revista: Uma policial feminina ou um agente masculino?
Lembremos que estamos falando de corpos de pessoas que são vistos como abjetos pela maioria da população.
Para quem tem proximidade ou teve a possibilidade de ler sobre o assunto, esta nem deveria ser uma questão. Mas na prática o que vemos são graves violações dos direitos humanos das pessoas Trans.
Normalmente são os homens que se posicionam contra, e alegam que as policiais e agentes femininas iriam se sentir constrangidas em revistar uma travesti ou mulher transexual pois seriamos — biologicamente — homens e deveríamos ser revistadas por homens (SIC). Ignorando totalmente a identidade de gênero das pessoas trans.
E é importante salientar que todos os agentes de segurança em seus cursos de formação, são preparados e formados para proteção, atendimento e abordagem de toda a população, sejam pessoas com pênis ou vagina, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos do art. 5º da Constituição Federal. E assim, não se pode admitir nenhum tipo de tratamento diferenciado em detrimento do direito do cidadão ou da cidadã, seja ela travesti ou mulher transexual.
E é interessante observar que, mesmo sendo preparados para revistar corpos de pessoas com pênis ou vaginas, alegam que o fato de uma mulher trans não redesignada lhe causaria constrangimento. Um argumento frágil e que demonstra a transfobia estrutural e institucional presentes em nossa sociedade e nas forças de segurança.
Não se pode admitir, sob nenhuma hipótese, que a alegação de constrangimento de um agente do estado — a fim de negar a abordagem, estaria acima do constrangimento que ele próprio poderia impetrar à população trans, quando do exercício de sua função. Pois além de um representante do estado de direito, e do dever constitucional de proteção, estaria infringindo princípios da inviolabilidade à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem e da dignidade da pessoa humana de toda uma população. Admitir que uma travesti ou mulher trans seja revistada por um homem, é ferir o seu direito a autodeterminação de gênero e uma violação da sua humanidade.
Pensando nisso, fui colaboradora da Cartilha de atendimento e abordagem da população LGBTI por agentes de segurança, da RENOSP-LGBTI, que visa difundir conhecimento e a propagação de boas práticas na segurança pública pautadas no enfrentamento da violência, respeito à diversidade e à dignidade da pessoa humana.
Tenho participado de diversas ações de formação, cursos, capacitações e palestras em espaços segurança pública, sejam para Policiais Civis ou Militares, Guarda-Municipais, Universidades e cursos de Segurança pública etc, bem como atuando na formulação de procedimentos e cartilhas, e constantemente vemos discussões sobre a abordagem e atendimento a pessoas trans se transformar em uma polêmica.
Temos trabalhado em parceria com diversas instituições para mudar esta realidade. Mas o cenário atual tem se colocado com uma barreira ao avanço que havíamos construindo. Infelizmente!
NOTA IMPORTANTE: Aqui falo sobre abordagem e busca pessoal em situação normal. Sem envolvimento em delitos ou qualquer situação agravante que possa ser usado para justificar esse tipo de abordagem. E é um ponto de partida para discutirmos as violações promovidas por agentes de segurança pública contra a população trans.
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- A autora desse texto também é membro da segurança pública e já publicou e contribuiu com cartilhas e protocolos sobre abordagem e atendimento à população LGBTQIA+ junto a RENOSP-LGBTI. Acesse em: https://renosplgbti.org.br/downloads/
- A Defensoria Pública da União expediu recomendação à Agência Nacional de Aviação Civil — ANAC e às concessionárias do serviço de infraestrutura aeroportuária, para que travestis e mulheres transexuais sejam revistadas nos aeroportos brasileiros por agentes do mesmo gênero com o qual se identificam (Recomendação Conjunta nº 1 DRDH-RJ/DRDH/SP — DPGU/SGAI/PDGU/GTLGBTI DPGU. Segundo a recomendação, deve ser levado em consideração única e exclusivamente o gênero autodeclarado pela pessoa a ser revistada.
- Existe um protocolo Policial construído pela FGV sobre abordagem a população LGBTQIA+. Acesse em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/29887